• Colunistas

    Thursday, 02-May-2024 02:31:00 -03
    Zeca Camargo

    Os donos do mundo

    16/06/2016 02h00

    "Se as coisas não melhorarem até o fim do ano, acho que estou arruinado", me contava Ismail, tentando embutir uma ironia no seu comentário, enquanto tomávamos chá no terceiro andar de sua loja (que também é uma galeria de arte), inaugurada meses atrás no Grand Bazaar.

    Mas a suposta ironia era só o disfarce para uma real melancolia. Não aquela que os próprios turcos chamam de "hüzün", antiga, histórica, platônica, quase romântica –como já tentou nos convencer o grande escritor Orhan Pamuk–, mas uma desesperança de quem não consegue acreditar num processo que se desenrola de maneira muito real no dia a dia de uma cidade que costumava ser um dos maiores polos turísticos do mundo: Istambul.

    Essa conversa aconteceu no último mês de abril, quando, de passagem rápida pela cidade, aceitei o convite de Ismail para visitá-lo no seu novo estabelecimento, a Iznik Works: seu primeiro grande negócio próprio, que encheu de orgulho esse filho, neto, bisneto e tataraneto de comerciantes que praticamente fundaram o Grand Bazaar. E se o tom já era de desânimo, você pode imaginar como ele estava depois do último atentado em Istambul, agora, no dia 7 de junho –o terceiro deste ano.

    Ismail lamentava, e com razão, que ataques como esses espantam os turistas. O que, para uma cidade como Istambul, é um golpe fatal. Falando também com uma amiga brasileira (casada com um turco) que mora lá e trabalha com turismo, descubro que o efeito já está sendo sentido, por exemplo, em operadoras de turismo do Brasil, que começaram a cancelar pacotes para a Turquia.

    Numa reportagem que ela me enviou, publicada pela "Turizm Gazetesi", os dados de fluxo de visitantes entre janeiro e maio de 2016 em Antalya, uma região no Mediterrâneo que recebe viajantes no ano todo, são assustadores: uma diminuição de 44%, cerca de 1 milhão de pessoas que deixaram de ir para lá, comparando com o ano passado. Italianos e franceses desapareceram em massa –65% e 59%, respectivamente. E os russos diminuíram 96%!

    Olhando assim, a triste conclusão é a de que o terrorismo está "ganhando": as pessoas estão mesmo assustadas a ponto de desistirem de um direito natural, que é o de circular pelo mundo. Em regiões mais instáveis politicamente, a estratégia parece dar certo. O Egito também viu o número de estrangeiros despencar recentemente. Será que nossa curiosidade vagante finalmente foi derrotada pelo medo?

    Talvez não. Até o momento em que escrevo esta coluna, o campeonato europeu de futebol transcorre sem grandes incidentes na França, um dos alvos do terror desde o ano passado –com segurança reforçada, é verdade, mas com o entusiasmo dos visitantes intacto. Duas semanas atrás estive em Bancoc (Tailândia) e fiz questão de ir ao templo de Erawan (cenário de outro atentado, em agosto de 2015), para acender incensos e rezar, como centenas de pessoas que passavam por lá. E meu amigo que tem um restaurante em Bruxelas –onde estive no dia do atentando em março passado– me dá a boa notícia de que o movimento só cresceu depois do susto inicial.

    Onde é seguro hoje em dia? Domingo passado acordamos com a notícia de que 50 pessoas foram mortas em um ataque em Orlando, na Flórida –cidade mais conhecida por ter certo parque de diversões que é referência para o turismo familiar no mundo todo (você sabe qual é"¦). E o próprio Rio de Janeiro, cheio de encantos mil, se prepara para receber a Olimpíada daqui a algumas semanas com um esquema poderoso que pretende driblar qualquer ameaça nesse sentido.

    Esse é o jogo deles, daqueles que, por não terem nada melhor a oferecer –na ideologia, na crença distorcida, no vazio do seu poder efêmero–, pensam que podem nos privar de circular pelo mundo. E se esquecem justamente que esse mundo não pertence a ninguém especificamente, mas a todos nós.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024