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    Zeca Camargo

    Ao visitar um lugar pela segunda vez, melhor não levar a nostalgia na mala

    23/03/2017 02h00

    Nas primeiras vezes, achamos que era uma provocação. Mas, como o ritual se repetia a cada noite, aos poucos fomos percebendo que era mais um hábito compulsivo e inocente. Em meados nos anos 1980, éramos um grupo de onze pessoas viajando por Bali -a maioria delas, pela primeira vez. Um dos nossos companheiros já havia estado lá e, justamente por isso, toda a vez que, depois de explorarmos um canto da ilha durante o dia (cada um tinha a liberdade de ir aonde quisesse), ao nos reunirmos para jantar e contar nossas experiências, ouvíamos desse amigo variações do comentário: "Ah, esse templo é incrível, mas quando eu fui lá cinco anos atrás...".

    Percebeu a "cutucada"? Nosso colega fazia isso sem perceber, como um reflexo, para pontuar que já havia passado por Bali "antes da invasão dos bárbaros"... É uma situação comum quando se juntam vários viajantes para trocar histórias –eu mesmo acho que já caí nessa tentação algumas vezes.

    Lembrei-me desse momento balinês nesta semana, quando estive em Trancoso, na Bahia, depois de 30 anos da primeira vez.

    Visitei esse paraíso antes mesmo de ir a Bali. Era ainda universitário, mochileiro –e, no início da década de 1980, fiquei, claro, encantado com a simplicidade de um vilarejo formado em torno de um campinho de futebol (o "quadrado") e uma igreja. Com uma praia deslumbrante emoldurando tudo...

    Pousadas, como a gente conhece hoje, nem existiam. Ficávamos em quartos alugados por uns trocados, nas casas dos moradores do próprio quadrado, e a comida era mais informal que um PF. A maior sofisticação que a gente podia ter era a natureza estupenda a nossa volta.

    Três décadas depois, de passagem pela mesma região durante uma reportagem, tive a sorte de ser convidado para assistir ao "Música em Trancoso", festival que já está na sexta edição. O evento traz uma programação maravilhosa (principalmente de música clássica) para a cidade e já faz parte do calendário cultural da "terra do axé".

    Antes de mais nada, fiquei extasiado com o local dos concertos a céu aberto. O Teatro L'Occitane é uma inesperada e belíssima estrutura de concreto rasgando a paisagem. Chegar ali com a luz do fim da tarde já é um evento. E quando a música começa...

    Inevitavelmente, uma vez que estava lá, passeei também pelo quadrado da minha memória –hoje cercado de butiques com shorts bordados a preços que, "no meu tempo", daria pra comprar uma casinha ali. E restaurantes com pratos esbarrando nos R$ 100, quantia que talvez alimentaria uma família por um par de semanas então.

    Tudo mudou, sem dúvida. Mas terá mudado para melhor? Ao ver o "meu quadrado" transformado em um shopping de luxo –e até a igrejinha usada como tela para projeções de arte–, minha primeira reação foi desconfiança. Como diria meu amigo em Bali, "quando eu conheci isso aqui...".

    Porém, foi essa mesma vivência que me permitiu aproveitar Trancoso sem cair nessa armadilha pedante. Assim como nós que não conhecíamos Bali ficávamos deslumbrados com o que víamos naquela primeira vez, esta Trancoso de hoje, tão mudada, é ainda um presente para seus sentidos.

    Sim, pode ser que aquela simplicidade que conheci seja coisa do passado. Mas tudo muda neste mundo. Como os detalhes dos templos balineses, a essência da "vida no quadrado" ainda está nesse canto da Bahia. E agora ainda adornado por uma música divina.

    Só mais uma prova de que, quando a gente viaja, é melhor não levar a nostalgia na bagagem...

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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