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    Zeca Camargo

    Passeio medieval em Tallinn

    29/06/2017 02h00

    Leda Balbino/Folhapress
    Centro histórico de Tallinn, capital da Estônia.Credito: Leda Balbino / Folhapress ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O centro histórico de Tallinn, capital da Estônia

    Ciente de que corro um risco de cair numa armadilha que eu mesmo armei na última coluna –quando falei do sensacional livro do francês Matthias Debureaux sobre a arte de aborrecer as pessoas ao contar das suas andanças abusando dos clichês- anuncio que hoje vamos fazer uma viagem no tempo!

    Esse lugar-comum, no entanto, não é apenas uma muleta para a preguiça de descrever um lugar que este autor ainda não visitou, mas a melhor definição da essência de visitar Tallinn, capital da Estônia: tudo ali existe em função de seu passado medieval.

    Fui apresentado a essa vocação da cidade quando cheguei lá tarde da noite e procurei um lugar para comer. Estive em Tallinn na baixa temporada –fim do inverno (europeu) deste ano. Por isso, os lugares que podem geralmente salvar os turistas -bistrôs, pizzarias e, mais recentemente, hamburguerias artesanais- já estavam fechados. Mas lá num canto da grande praça central, uma tocha (e não um neon) dava uma esperança de um prato quente a este visitante faminto.

    Entrei numa sala à luz de velas, onde uma mulher vestida com algo que estava longe de ser um costume moderno logo me ofereceu uma salsicha e uma tigela de guisado. O nome do lugar era 3 Dragões -dois cravados na alta parede do lado de fora, como pontudas gárgulas; e o terceiro, segundo ela, estava solto por aí. Foi meu primeiro contato com o "humor medieval", onipresente em Tallinn.

    Não é muito engraçado ver aquelas pessoas "vivendo como antigamente" –e em alguns momentos você tem a sensação de que está apenas num parque temático daquele período. Mas aos poucos você vai penetrando nesse passado –e o que parece apenas cenário vai se tornando, de fato, história.

    Senti isso mais forte ao entrar na igreja do Espírito Santo Puhavaimu Kirik, não muito distante da tal praça central (tudo é muito próximo em Tallinn, como na Idade Média). Visitando outros templos da cidade, acabei me acostumando a esse formato de igreja, mas logo que entrei lá senti uma estranheza: sua disposição não é convencional, com uma grande galeria que culmina num altar -ali os fiéis são distribuídos em vários nichos (inclusive alguns em mezaninos) que desnorteiam o olhar cristão convencional.

    Tudo é solene e belo -simples e inesperado. Mais: tudo é autêntico e, por conta disso, você pode finalmente se sentir transportado para séculos atrás. A mesma experiência se repete quando você visita a igreja do Domo -com um detalhe a mais: as paredes ali são ornadas com enormes brasões de família em madeira. Definitivamente você não está no Vaticano...

    Os muros que rodeiam a cidade antiga, outra marca medieval registrada, dão a sensação de intimidade e confidência. É como se os arcos das torres que você cruza lá e cá estivessem sempre te sussurrando segredos daquelas fachadas que, numa estranha reminiscência, me sugeriam cidades de madeira dos meus jogos de armar da infância...

    As janelas são pequenas e as paredes, grossas. Cones vermelhos cobrem os telhados e portas pesadas escondem rotinas misteriosas que evocam a pergunta: será que muita coisa mudou daquele cotidiano que uma visita museu da História da Estônia –o Guild Hall- nos convida a imaginar?

    Ali vemos banquetes reconstruídos, ouvimos música de alaúdes, quase sentimos o cheiro da cozinha no porão -e por breves instantes nos sentimos mesmo cidadãos medievais. Mas aí passamos dos limites dos muros, vemos placas de trânsito que indicam a saída, num moderno ferryboat para Estocolmo ou Helsinki –e o século 21 retoma freneticamente seu lugar.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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