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    Zeca Camargo

    Uma festa em Bamako

    30/11/2017 02h00

    O que é uma viagem? Chegando de mais uma passagem por Paris, peguei-me fazendo esta pergunta a mim mesmo. Não interrogava sobre o ato de viajar. Ainda tinha no bolso meu tickets de bagagem, o cartão de embarque digital no "Momentos" do meu smartphone e as malas que aguardava traziam lembranças de que eu de novo havia saído de casa para explorar um espaço que não é meu cotidiano.

    No entanto, um dos itens na minha valise maior fazendo a curva ali na esteira rolante tinha a ver com uma outra viagem dentro dessa de Paris. Um catálogo da exposição "Malick Sidibé, Mali Twist" era o souvenir deste outro itinerário por um país africano que revisitei então pelo olhar desse gênio da fotografia, que viveu até o ano passado registrando sua gente, seu lugar, sua vida.

    Quando fui a Mali, quase dez anos atrás –aventura que já contei numa das minhas primeiras colunas aqui ("O fim do mundo", 16 de janeiro de 2014)– passei apenas rapidamente por Bamako, a capital. Fonte musical de onde vários artistas já beberam, eu tinha curiosidade de explorar a cidade que foi a inspiração de Sidibé –cujo trabalho eu já conhecia de algumas exposições coletivas sobre fotografia africana–, mas naquela viagem não tive tempo para isso.

    Esta grande mostra de agora, que fica em cartaz na Fondation Cartier até 25 de fevereiro do ano que vem, cumpriu finalmente essa missão. No primeiro salão, você encontra o início de tudo: uma réplica em papel machê da máquina fotográfica icônica de Sidibé, uma Rolleiflex das antigas, cujo barulho alto dos disparos das lentes é a própria onomatopeia de um clique. Nas paredes, os incríveis retratos que hoje são parte da história da fotografia –tão simples e singelos que qualquer aprendiz dessa arte deve tê-los em mente para lembrar do perigo dos excessos na representação...

    Andre Durand - 15.jul.2006/AFP
    Retrato de Malick Sidibé, feito em julho de 2006
    Retrato de Malick Sidibé, feito em julho de 2006

    A viagem só começava. No salão ao lado, as fotos feitas em festa, com uma juventude maliana explodindo alegre na independência da nação, aos som do twist –um termo genérico para a música desses encontros que ia de James Brown aos Beatles. E foi nos ângulos improváveis dos braços e pernas desses moços e moças que vieram as lágrimas.

    Chorei diante de uma enorme reprodução da clássica "Nuit de Nöel 1963" (na verdade, uma véspera do início do Ramadã no Happy Boys Club), com um irmão e uma irmã –e não um casal, como muitos assumem– dançando testa com testa. E segui chorando de festa em festa. Emocionei-me não só com as formas que via, mas pela alegria que elas passavam. Por um canal inexplicável, as fotos de Sidibé nos conectam com aquela inocência e euforia de Mali nos anos 60 e de repente é como se você tivesse aceito um dos convites finamente escritos à mão por sua anfitriã –digamos, Mademoiselle Fanta! Você está lá e quer fazer parte daquilo– um desejo não muito diferente do que experimento em qualquer viagem.

    Gianluigi Guercia - 5.nov.2011/AFP
    Malick Sidibé, é fotografado em Bamako, Mali
    Malick Sidibé, é fotografado em Bamako, Mali

    No subsolo, a famosa sequência de fotos à beira do rio Niger, com a mesma juventude exuberante em poses inesperadas nos seus trajes de banho –e mais retratos cativantes, como aquele posicionado bem na escada: quatro instantâneos estudados, como os que tiramos em máquinas automáticas. Fui hipnotizado por aquele rosto elegante, a impecável gola branca da camisa sobre o pulôver de pala listrada, a mão esquerda eventualmente compondo o quadro, e acima de tudo aquele olhar um tanto vesgo que, longe de incomodar, era pura sedução.

    Só depois de sair da exposição, pesquisando mais sobre o fotógrafo, dei-me conta de que aquele zarolho era o próprio Sidibé, que na sua ligeira imperfeição, deu ao mundo o retrato perfeito de sua gente e seu país. Foi com ele que viajei naquela tarde fria e úmida de Paris pelo calor das noites de embalo de Mali.

    Não trouxe desse destino mais um carimbo no passaporte, mas quem liga para isso quando um artista como esse nos lembra que existem outras maneiras de viajar pelo mundo?

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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