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    Mulher presa na cracolândia agora quer mudar de vida

    EMILIO SANT'ANNA
    DE SÃO PAULO

    03/09/2012 06h00

    Por sete anos, o tempo parou. Dias e noites foram iguais, o vício a arrastar seu corpo. Na cracolândia, desde agosto de 2005, Desirée, 34, andou com a morte. "Sempre soube que só sairia dali presa ou num caixão." Saiu presa.

    Grávida, deixou as ruas do centro de São Paulo duas vezes mais viva do que chegou.

    A Folha acompanhou seus passos durante sete meses, desde que a encontrou em janeiro, no quarto mês de gestação, numa pensão próxima à estação da Luz.

    Olhos pintados, restos de esmalte nas unhas e o rosto fundo. Sob a camisa, a barriga começava a despontar.

    Em meio à tensão dos primeiros dias da operação de combate ao tráfico deflagrada pelo governo paulista na região, uma mulher perguntava por ela a cada esquina.

    Teresa Beatriz Viega, 68, faxineira, analfabeta, virava as noites atrás de notícias de Desirée. Havia quase um mês que não a encontrava. Não sabia nem ao menos se esse era seu verdadeiro nome.

    Sabia apenas que ela fazia parte da romaria de viciados e que a criança que carregava era seu neto."É meu sangue, filho do meu filho. Que mãe ou avó não fariam o mesmo?"

    Não teve tempo para fazer mais. Uma semana depois, em 18 de janeiro, Desirée foi presa sob suspeita de tráfico.

    Com ela, diz a polícia, estavam 54 pedras de crack -quantidade que ela nega.

    Nesse dia, Teresa a encontrou. Deu R$ 100 para a pensão, perguntou pela saúde do bebê e se ela sabia que o pai da criança -que está preso por tráfico- é soropositivo.

    "Senti o fim de tudo ali. Saí e comprei 17 pedras. É tudo o que se compra com esse dinheiro. Queria fumar até morrer. Estava tão insana que nem vi de onde veio a polícia. Não dei um tragada."

    Acabou como uma das 598 pessoas presas em flagrante desde o início da operação.

    Veja vídeo

    A PENITENCIÁRIA

    Sob o olhar da funcionária da Penitenciária Feminina da Capital, na zona norte, com capacidade para 251 mulheres, Desirée Mendes Pinto é uma entre as quase 700 detentas; foi condenada a seis anos.

    É uma tarde fria de julho. No ala das gestantes, o vento atravessa os corredores.

    Desirée desce as escadas. Os olhos pintados e as unhas bem feitas revelam que, apesar do que viu e viveu, nunca esqueceu a vaidade.

    Em suas mãos marcadas, o cobertor quase esconde o rosto e os olhos enormes de Enzo -pouco mais de um mês de vida. "Ele é muito tranquilo", diz, quase sussurrando.

    Quando chegou à cadeia, ainda grávida, pediu pelo teste de HIV. Um mês depois, o resultado: ela e o menino estavam "limpos", afirma.

    Casos assim, explica o infectologista Caio Rosenthal, do Instituto Emílio Ribas, são raros. "Se o parceiro estiver tomando todos os remédios e a carga viral estiver sob controle, pode acontecer. Caso contrário é bem mais difícil, mas não impossível", diz.

    Desirée sai pouco da cela. Uma hora por dia de banho de sol com o menino e o resto do tempo dedicado só a ele.

    Às vezes, faz a maquiagem de uma detenta, tira a sobrancelha de outra. Pelo trabalho recebe em maços de cigarros.

    "Não sou traficante. Ter sido condenada a seis anos é subestimar muito a capacidade do tráfico na cracolândia. Ali se vende 1 kg de crack em três horas. Nenhum traficante vai com 50 pedras para a 'boca'."

    O tráfico na cracolândia, explica, recruta usuários para "cortar as pedras" em troca de um punhado da droga.

    "O nóia de verdade compra uma pedra para fumar uma e meia. Usa uma parte, vende a outra e compra mais", afirma.

    O MEDO

    Desirée é a terceira de uma família de quatro filhos, tipicamente de classe média. A cocaína lhe apresentou, aos 12 anos, um mundo de onde nunca se livrou. Ainda concluiu o ensino médio, foi às aulas de inglês, tentou ir em frente. Não conseguiu.

    Para quem começa a entender o que foram os últimos sete anos, impossível não saber qual o peso dos próximos seis.

    É a terceira vez. Cumpriu três anos na primeira, passou quase um a espera de julgamento, antes de ser absolvida, na segunda.

    Mas não é isso o que a preocupa agora. Seis meses é o limite para as mães da cadeia ficarem com seus bebês. Com ela não vai ser diferente.

    "Tenho três filhos, quatro agora. Eles cresceram, nunca fui mãe de verdade. Quando eu sair, ele não vai me reconhecer... não vai me reconhecer", repete para si mesma.

    A mulher, que pisou na cracolândia pela primeira vez em 19 de agosto de 2005 e em pouco tempo se tornou invisível, tem agora o mesmo medo de quando estava nas ruas.

    "Tinha horror a calendário. Não suportava descobrir o dia, o mês em que eu estava."

    Os filhos de Desirée moram com sua mãe, uma mulher de 65 anos que pede para não ser identificada, e que durante anos correu atrás da filha.

    Teresa também continuou correndo. Foi ao presídio quatro vezes. O nome escolhido para o menino, porém, acabou em desentendimento. Foi tirada da lista de visitas.

    O FUTURO

    Há cerca de um mês, Desirée voltou para casa de sua mãe. Um habeas corpus garantiu sua liberdade enquanto recorre da pena. Para a defensora pública Juliana Pascutti, a decisão fez valer a lei.

    Já para o promotor Arthur Pinto Filho, o caso de Desirée é um exemplo de prisão "que não muda nada na estrutura do tráfico na cracolândia".

    Ele é um dos autores da ação civil pública que impôs limites à abordagem dos usuários de drogas pela PM na região. Segundo Desirée, os casos de violência ainda eram recorrentes enquanto estava nas ruas. "Agora as coisas estão, pelo menos, no nível da civilidade", diz o promotor.

    A Secretaria de Estado da Justiça não comentou o caso de Desirée. Em nota, porém, afirma que a operação na cracolândia "pode gerar situações de confronto até porque os autores de crime e os foragidos recapturados não estavam dispostos a se entregar".

    Segundo a secretaria, a diferenciação entre usuários e traficantes é feita em três momentos: na abordagem policial, na avaliação do Ministério Público e pela autoridade judicial. Para a pasta, "a cracolândia como existia antes não existe mais".

    Teresa, que virou noites e noites nas ruas da região não sabe se algo mudou ou não.

    Enquanto pensa em "juntar a família", a faxineira continua sua rotina. Aos domingos visita o filho na cadeia, durante a semana limpa casas num condomínio de luxo.

    Aos finais de semana, não raro, ainda vai à cracolândia. Durante os anos que andou atrás do filho e da nora, passou a ver além da degradação.

    Agora, Desirée tenta reaprender a viver sem o crack e a ser mãe. Aos poucos, ela e Teresa se reaproximam -há um menino de três meses entre elas. Talvez o tempo volte a correr para as duas.

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