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    Cidade brasileira de 'eterna beleza' cresce e enfrenta seu lado problemático

    SIMON ROMERO
    DO "NEW YORK TIMES", em SALVADOR

    12/11/2013 21h53

    Há joias de arquitetura barroca nesta cidade. Músicos deslumbram audiências com apresentações incendiárias, refletindo o status de Salvador como baluarte da cultura popular brasileira. Torres residenciais de luxo oferecem a vista de um porto deslumbrante. Os parques industriais suburbanos abrigam fábricas moderníssimas, construídas pela Ford e outras grandes empresas multinacionais.

    Em Salvador, a maior cidade do Nordeste brasileiro, uma região que continua a registrar crescimento econômico invejável mesmo em meio à desaceleração da economia nacional, tudo deveria estar indo de vento em popa. Mas a expansão econômica está produzindo resultado diferente: em lugar de celebrar a cidade, como seus moradores sempre fizeram - o escritor Jorge Amado certa vez a definiu como um lugar descontraído e de "eterna beleza" - muitos moradores agora vivem revoltados com a metrópole.

    Em uma história que pode servir como exemplo cautelar a outras metrópoles dos países em desenvolvimento, a crescente prosperidade de Salvador, visível em novos shopping centers, imensas igrejas e condomínios bem protegidos, existe em companhia de uma realidade perturbadora. Uma disparada no número de crimes violentos fez de Salvador a capital brasileira dos homicídios; os motoristas precisam enfrentar um dos mais caóticos e violentos trânsitos da América do Sul; e fervilha o ressentimento pela transformação dos bairros costeiros, antes elegantes, em regiões de alta criminalidade e repletas de edifícios abandonados que só podem ser descritos como ruínas.

    "Nossos líderes políticos são de tamanha mediocridade que é difícil compreender", diz Antonio Risério, escritor e historiador que narrou em sua obra as origens de Salvador como primeira capital do Brasil, entre 1549 e 1763, e como berço da cultura afrobrasileira. "Não somos uma cidade falida, mas um lugar no qual a classe média vive com medo", acrescenta Risério, um dos mais contundentes críticos das mudanças recentes em Salvador.

    Salvador agora registra mais homicídios a cada ano do que qualquer outra metrópole brasileira, incluindo a gigantesca São Paulo, quatro vezes maior. Esse colapso da segurança se tornou tão agudo e surreal este ano que vítimas de homicídio vêm sendo encontradas decapitadas, como no caso de um corpo deixado na estrada para o aeroporto, ou torturadas por turbas, como no caso de um suspeito de estupro emboscado por moradores de uma favela chamada Bairro da Paz.

    Embora a desigualdade tenha persistido, a renda crescente e o acesso ao crédito ajudaram a dobrar a frota de veículos de Salvador, nos 10 anos passados, para mais de 750 mil.
    Mas com projetos rodoviários paralisados ou inexistentes, e partes da cidade ainda dotadas das ruas e becos de paralelepípedos da era colonial, o furor no trânsito está se intensificando.

    A cidade de 2,9 milhões de moradores (e um total de cinco milhões na área metropolitana) ficou chocada em outubro com as imagens de uma briga de trânsito em Ondina, um dos bairros residenciais mais exclusivos da cidade. Um oftalmologista de 45 anos, dirigindo um utilitário esportivo, teve sua imagem capturada em câmeras de vídeo ao perseguir e atropelar dois irmãos que estavam em uma motocicleta, esmagando-os contra a cerca de um hotel e matando os dois.

    Os desafios de mobilidade em Salvador são ainda mais complicados por projetos fracassados de transporte coletivo como um dispendioso sistema de metrô que de algum modo nunca funcionou. As construtoras brasileiras começaram a construir os grandes pilares de concreto reforçado do sistema de metrô, projetado para trens de passageiros importados da Ásia, em 1997.

    As autoridades brasileiras investiram centenas de milhões de dólares em dinheiro público no projeto, e auditorias identificaram grandes estouros de custo, mas as obras não foram concluídas. Passados 16 anos do início da construção, as autoridades por fim informaram em outubro que investiriam mais US$ 600 milhões para colocar o sistema em operação, mas apenas depois da Copa do Mundo de 2014, quando outras grandes cidades brasileiras planejam exibir seus novos sistemas de transporte coletivo.

    Diante de tamanha desordem, alguns moradores de Salvador tentam rebater as críticas apontando para estatísticas que mostram que outras cidades do Nordeste, entre as quais João Pessoa e Maceió, mostram índices maiores de homicídios, em base per capita. E o cardápio cultural de Salvador continua sublime, digno de uma cidade que levou à fama alguns dos maiores cantores e compositores, como Caetano Veloso, e cineastas brasileiros.

    Mas muita gente aqui se ressente das comparações com Recife, outra cidade da região e base política de Eduardo Campos, um dos candidatos à eleição presidencial do ano que vem. Recife tem um cenário cultural animado e produziu "O Som ao Redor", um filme muito elogiado pela crítica que representará o Brasil na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro.

    Os problemas de Salvador estão prejudicando um setor turístico que costumava ser vibrante. Na Barra, uma região de praias ensolaradas onde surfistas pegam ondas, o proprietário italiano de um pequeno hotel foi morto a cacetadas no final de 2010. Em outubro, um turista brasileiro de 15 anos foi morto no centro velha da cidade por uma bala perdida de um tiroteio.

    Mesmo o Pelourinho, bairro da era colonial repleto de igrejas douradas e monumentos históricos, não fica imune. A área, revitalizada nas últimas décadas, continua a atrair visitantes. Mas embora uma unidade especial da polícia se esforce para impedir roubos e assaltos, agora é comum em certas partes do bairro ver adolescentes de roupas esfarrapadas fumando crack à luz do dia.

    Abalados por cenas distópicas como essas, que acontecem em meio a bolsões de riqueza muito bem protegidos, os cidadãos estão lutando para encontrar estratégias que revertam o declínio da cidade. Antônio Carlos Magalhães Neto, herdeiro de uma dinastia política local importante e atual prefeito de Salvador, nem hesitou quando perguntado se Salvador podia ser considerada uma "cidade falida", como alegam alguns moradores.

    "Estamos no processo que nos recuperará dessa condição", disse Magalhães Neto, 34, em entrevista.

    Desde que assumiu, no começo do ano, ele diz que adotou medidas de elevação da arrecadação, com o aumento do imposto predial, e contratou a consultoria McKinsey & Company a fim de encontrar maneiras de melhorar a burocracia municipal. Ele atribui boa parte da culpa pelos problemas ao seu predecessor, João Henrique Carneiro, cujos índices de aprovação recuaram à casa de um dígito antes de ele deixar o posto ao final de oito anos de governo.

    O governo estadual da Bahia também recebe sua parcela de críticas, especialmente quanto aos esforços de combate ao crime. Robinson Almeida, porta-voz do governador Jaques Wagner, diz que a crescente prosperidade da capital Salvador acentuou alguns problemas, porque agora mais pessoas podem comprar drogas.

    "Estamos sofrendo de um boom no consumo de crack", disse Almeida, mencionando a ampla disponibilidade da droga e estimativas de que mais de metade dos homicídios em Salvador envolvem disputas relacionadas a drogas. Em algumas das favelas mais perigosas da cidade, ele disse, novos programas de policiamento estão começando a reduzir o número de homicídios.

    Ainda assim, em um passeio no mês passado por uma vasta rede de favelas, Nordeste de Amaralina, onde Almeida declarou que as autoridades reforçaram a presença da polícia, a natureza tênue das políticas de combate ao crime do governo ficava aparente.

    Ainda que Nordeste de Amaralina conte com uma "Base de Segurança Comunitária", como são chamados os novos postos da polícia em Salvador, um adolescente portando uma pistola automática abordou este repórter e seu fotógrafo para perguntar por que estavam entrevistando moradores e tirando fotos da comunidade.

    Paulo César Barreto, 44, que estava nos servindo de guia, acalmou o jovem, explicando que o plano era falar com parentes de vítimas de homicídio em Nordeste de Amaralina.
    Depois ele mostrou aos visitantes o lugar em que seu irmão, Gílson Barreto, porteiro, foi morto aos 33 anos em 2008 - não por criminosos, mas pela polícia.
    "Depois que o mataram, os policiais roubaram sua carteira de identidade e dinheiro", diz Barreto, cuja família abriu processo contra os policiais envolvidos no episódio. Investigadores dizem que os policiais plantaram uma arma na vítima, e falsearam um relato de que esta havia disparado contra eles.
    No mesmo bairro, em 2010, Joel da Conceição Castro, 10, levou um tiro da polícia na cabeça, como parte do que foi descrito como operação frustrada de combate às drogas. Antes de morrer, Joel havia estrelado um comercial de televisão promovendo o turismo em Salvador.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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