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    Depoimento: Dá para entender sem desenhar?

    RAUL JUSTE LORES
    CORRESPONDENTE EM WASHINGTON

    25/01/2014 03h00

    São Paulo fica brava quando se tenta dar mais velocidade ao transporte coletivo e protesta contra corredor de ônibus.

    E se surpreende que multidões queiram usufruir das suas únicas "calçadas" bem pavimentadas e supostamente seguras, as dos shoppings (apesar do atestado de cidade doente que isso representa).

    Um novo Plano Diretor é uma oportunidade rara para educar a opinião pública a construir a cidade. Mas somos campeões de desperdiçar oportunidades -e em falar difícil.

    Nova York recorreu a uma cartilha vermelha, com fotos, mapas coloridos e quadrinhos, que escancara o esforço em se fazer entender por seus cidadãos. Seu "Manual do Zoneamento" (Zoning Handbook) ensina, para qualquer leigo, o que se pode construir na cidade.

    Em 150 páginas (com letras grandes e muitas ilustrações), a prefeitura explica o uso do solo. Não substitui a legislação propriamente dita, mas é um didático "modo de usar".

    Fotos e desenhos explicam as exigências para a construção de um empreendimento de uso misto (comercial e residencial), com a altura permitida, as (poucas) vagas de garagem, o recuo e o varejo estrategicamente instalado na altura da calçada.

    Há exemplos concretos -dos chamados "distritos industriais", onde a prefeitura estimula novos usos para antigos armazéns e fábricas, sem permitir a total destruição dessa memória, a como adensar e levar mais moradores a área costeira do Brooklyn.

    Mostra como funciona o "zoneamento de incentivo" -a prefeitura estimula a criação de pracinhas abertas ao público nas grandes torres de escritórios e de apartamentos, chamados "espaços públicos de propriedade privada". Até a acessibilidade e a qualidade dos bancos são contempladas.

    Um capítulo "Como ler o zoneamento", explica as leis e o que se aplica ou não a cada bairro.

    São Paulo está tentando fazer algo parecido neste momento. Um concurso lançado pela prefeitura e organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil quer descobrir entre os arquitetos brasileiros ideias de ocupação dos quarteirões da cidade.

    Inclusive, quem diria, que os arquitetos imaginem "produtos imobiliários", empreendimentos que interajam com o espaço público, que o nosso mercado não sabe construir. Tarde demais para pedir "rolezódromos" na periferia, não?

    Os projetos concorrentes serão entregues no mês que vem. Seria histórico que não sejam desterrados para a gaveta das boas intenções da prefeitura, compartilhando poeira com o Plano Diretor de 2002 (gestão Marta) e o projeto Nova Luz (gestão Serra/Kassab). Ambos não causaram o menor impacto civilizador na maior onda imobiliária de São Paulo em décadas.

    Atualmente, basta um passeio na Vila Madalena ou no Itaim para ver que cada novo espigão nasce onde havia um sobrado. A relação com a calçada é interrompida por grades ou muros e os estabelecimentos comerciais que dão ritmo à calçada vão desaparecendo, já forçando a multidão de novos moradores dos espigões a jamais sair a pé.

    Esse concurso pode estabelecer parâmetros dignos das quadras de Nova York e Buenos Aires, onde prédios colados um no outro, sem recuo, e lojas e bares nas calçadas criam vizinhanças vibrantes e caminháveis.

    Ou vamos esperar que a nova verticalização de Ipiranga, Brás, Água Branca, Jabaquara repita o isolamento carro-dependente de Morumbi e Vila Olímpia?

    A sociedade dá sinais de querer participar mais dessa discussão. No entanto, o movimento "Não no meu quintal" já está na rua. Seus slogans: "a cidade tem que ser adensada para encurtar as distâncias, mas eu quero minha rua de casinhas e a vista da janela do meu apartamento"; "sou a favor de corredor de ônibus, mas que não passe na minha porta"; "é bom ter bares e lojas nas ruas, mas não quero barulho".

    A reação negativa contra os corredores não pode ser esquecida: até mesmo a mídia precisa ser educada ou vai continuar pedindo os mesmos remédios que São Paulo tomou nas últimas décadas e que deixaram a paciente ainda mais doente.

    A cartilha novaiorquina é um antídoto para os calhamaços de mil páginas com jargão que só arquiteto entende. Tem que saber desenhar para democratizar a discussão.

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