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    Rio de Janeiro

    Professora de Oxford diz que jovens só querem se divertir em 'rolezinhos'

    MARCO AURÉLIO CANÔNICO
    DO RIO

    28/01/2014 12h08

    Mesmo sendo originalmente uma busca por diversão, os "rolezinhos" nos shoppings trazem em si uma crítica implícita à exclusão que vitima os jovens de periferia. "Vestir-se bem e ocupar um shopping é uma forma de reivindicar espaço e o direito à cidade. Uma forma implícita de protestar contra o racismo e discriminação de classe", diz a antropóloga gaúcha Rosana Pinheiro-Machado, professora de antropologia do desenvolvimento na Universidade de Oxford, na Inglaterra.

    Cientista social com pós-doutorado em antropologia pela UFRGS, ela começou a pesquisar, em 2009, o fenômeno dos "bondes de marca", indo com os jovens da periferia de Porto Alegre ao shopping para estudar a relação deles com produtos de marca, também expressa por meio do funk ostentação.

    Em entrevista à Folha por e-mail, a antropóloga diz que os rolezinhos refletem a busca dos jovens mais pobres por visibilidade e reconhecimento, pela via do consumo.
    Mas, apesar de enxergar um caráter político implícito nessas grandes reuniões, diz que "não se pode ter ilusão de que aqueles meninos queriam fazer uma revolução". "Eles apenas querem se divertir, brincar, mas fazem isso de forma que acaba sendo quase subversiva. Afinal, é inesperado para muitos que jovens da periferia queiram também a riqueza."

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    É possível determinar o que está na origem dos 'rolezinhos'?
    A origem dos 'rolezinhos' é o antigo passeio para zoar no shopping, uma atividade juvenil das periferias, mas não apenas delas. Vale lembrar que os espaços de entretenimento das periferia são escassos. A ideia é namorar e se divertir dentro de uma rede de amigos e parceiros. As meninas são as seguidoras. Nesse costume já de anos, ressalto a importância de estar bem vestido para se inserir naquele espaço que, em teoria, não foi planejado para eles. Os shoppings, como espaço de compras, possuem como público-alvo pessoas endinheiradas.

    A origem, então, é simplesmente diversão. No entanto, sempre foi um ato de crítica implícita. Nossas entrevistas, minha e da antropóloga Lucia Scalco, mostram isso claramente: os jovens ressaltavam que era fundamental estar bem vestido não apenas para atrair as meninas, mas para ser aceito naquele lugar, onde não queriam ser vistos como "bandidos". Depois do "rolezinho" de dezembro, que chamou muita gente e ganhou visibilidade, os "rolezinhos" começam a se tornar um movimento mais difuso e politizado.

    Divulgação
    Professora de Oxford Rosana Pinheiro-Machado diz que jovens querem apenas se "divertir e brincar" nos "rolezinhos"
    Professora de Oxford Rosana Pinheiro-Machado diz que jovens querem apenas se divertir nos "rolezinhos"

    É possível distinguir um objetivo que une a maioria dos participantes?
    Sim, a diversão! O prazer, a brincadeira. Não podemos esquecer que a maioria desses jovens é muito nova! Muitos, adolescentes. Há a intenção de se divertir e, com a diversão, ganhar visibilidade e reconhecimento.

    Por que o fenômeno é típico do jovem de periferia?
    Em 2011, Ronaldo Lemos, colunista da Folha, escreveu precisamente sobre esse tema, que é global: jovens de periferia que se apropriam de espaços e símbolos das elites. O "rolezinho" é uma variante nacional. Só faz sentido porque é de camadas populares. O significado oculto é justamente reivindicar coisas que são negadas no dia a dia, se apropriar delas e pertencer a esse universo. Algo como "eu também quero". Os shoppings, para esses grupos excluídos de espaços de sociabilidade e de lazer, são espaços "totais", onde os jovens consomem, se divertem e namoram.

    O que mobiliza tanta gente para esses encontros?
    Hoje, é difícil responder a essa questão. Uma vez reprimidos, os "rolezinhos" se transformam num fenômeno nacional. Quanto maior a repressão, maior a revolta e a solidariedade por parte dos movimentos sociais e da população em geral. Portanto, tende a reunir cada vez mais adeptos.

    Como os shoppings deveriam lidar com os rolezinhos?
    Numa sociedade democrática, a única saída é permitir e aceitar. Não tem como impedir porque qualquer impedimento será sempre discriminatório, uma vez que não tem como medir e avaliar quem é possível membro dos "rolezinhos". Os índices de furto não aumentaram, não há argumentos legítimos para proibir. A concepção de distúrbio da ordem é bastante relativa. Como definir objetivamente ordem? Não tem saída, é preciso permitir.

    Há preconceito na reação dos shoppings?
    Totalmente. Preconceito e discriminação. Basta ver a reação no vídeo dos jovens universitários brancos que ocuparam um shopping: todo mundo aplaudindo. Nós temos uma história muito triste em nossa humanidade de apartheid. Para que continuar a fazer atos que nos lembrem desse momento?

    Boa parte dos trabalhadores dos shoppings são moradores de periferia. Há preconceito destes contra os jovens de sua mesma classe social que participam dos "rolezinhos"?
    Sim, totalmente. O que tenho visto nas redes sociais, tenho acompanhado bastante de perto, é que existe um grande preconceito na mesma classe social. Isso é um fato complexo, porque é também um mecanismo de defesa e distinção. Muita gente opta pelo caminho oposto: em vez de brigar contra o preconceito que sofre, ser um aliado dele.

    Como você vê a reação da sociedade, do Estado e da mídia ao fenômeno?
    A sociedade brasileira está totalmente dividia entre apoiadores e pessoas que desprezam o movimento. O Estado, quando envia a polícia, mostra que ainda temos muito a aprender sobre como exercer nossa democracia. Mas é importante lembrar que muitos juízes deram liminares favoráveis aos "rolezinhos". A mídia escrita, que eu tenho acompanhado, tem procurado ser muito mais imparcial no caso dos "rolezinhos" do que no movimento de junho de 2013.

    É possível ver conexão entre os "rolezinhos" e os protestos do ano passado?
    Não há conexão direta, mas indireta. Membros da periferia de São Paulo se integraram aos movimentos de junho. Desde o ano passado, há um clima fervilhando de movimentos sociais. É claro que esse clima influencia, porém, relacionar diretamente é precipitado.

    Assim como nas manifestações de junho, os "rolezinhos" já começaram a ser apropriados por outros grupos; como você vê essa apropriação, com a entrada de movimentos como os Sem Teto e os black blocs?
    Isso era esperado. O Brasil está num momento muito especial, em transição, em um ano que promete. E sem dúvida há uma solidariedade dos movimentos sociais. Até agora, a pauta é clara: o direito de ir e vir das classes discriminadas. Portanto, eu vejo essa apropriação como solidariedade, por um lado, e como a possibilidade de soltar um grito engasgado.

    Você escreveu que "há contestação política nesse evento". Ela é consciente?
    Não, é implícita, ao menos no passado. Se vestir bem e ocupar um shopping é uma forma de reivindicar espaço e o "direito à cidade". Uma forma implícita de protestar contra o racismo e discriminação de classe. Para os jovens, é importante "estar bonito" para ir para "o centro". Porém, nos últimos dias, temos visto uma politização bastante interessante. Os jovens da periferia estão sendo protagonistas agora e esse é um momento muito especial na nossa história.

    Você também escreveu que "adorar os símbolos de poder –no caso, as marcas– dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato". Assim sendo, qual o sentido da contestação política nos "rolezinhos"?
    Simples: a exclusão que existe é social. Ao se usar de símbolos de marca, eles querem pertencer a essa sociedade de bem estar que só aparece na televisão. Afinal, na vida real, o cotidiano é marcado por "porradas" da polícia, escola sem professor e fila do SUS. Resistência é um ato de resistir às normas hegemônicas do poder. Mas não se pode ter ilusão de que aqueles meninos de 16 anos queriam fazer uma revolução, eles apenas querem se divertir, brincar, mas fazem isso de forma que acaba sendo quase subversiva. Afinal, é inesperado para muitos que jovens da periferia pobres queiram também a riqueza.

    O "rolezinho" é um fenômeno tipicamente contemporâneo ou poderia ter acontecido no passado?
    É um fenômeno contemporâneo e antigo. Antigo porque os grupos populares periféricos sempre ocuparam espaços das elites desde a abolição da escravatura no Brasil. E sempre foram expulsos desses lugares por meio de políticas higienistas e por meio da força policial.
    Mas também é um fenômeno novo porque está imbuído de novos elementos: o funk ostentação, a globalização, as redes sociais e o próprio momento especial da sociedade brasileira que, desde o ano passado, tem participado de uma fase de maior reivindicação democrática de todas as ordens, bem como de maior intolerância quanto às injustiças sociais.

    Quais os próximos passos desse fenômeno?
    Acredito que deve crescer e se tornar mais plural, com mais adeptos. Aguardemos. Com a Copa do Mundo, muitos "rolezinhos" de todas as classes ainda vão surgir e agitar a sociedade brasileira, e assim seguiremos discutindo e pensando sobre nossa democracia.

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