Nos últimos 14 anos, a rotina do técnico em telecomunicação Cláudio Rocha, 53, inclui a procura desesperada pelo pai, desaparecido.
Desde 15 de janeiro de 2000, ele visitou um sem-número de hospitais, unidades do IML e delegacias de São Paulo, mas nunca mais teve notícias do aposentado João Rocha, que tinha 72 anos quando sumiu de casa.
Na semana passada, Cláudio recebeu um telefonema que pôs fim à sua procura.
As notícias não poderiam ser piores: o pai estava morto e, apesar de ter se identificado ao dar entrada no hospital, foi enterrado como indigente em março de 2000.
Quatorze anos de procura em vão. "Eu esperava encontrá-lo vivo até hoje. Isso é um descaso muito grande", afirmou ele à Folha.
A família Rocha foi vítima de uma falha na burocracia estadual, que, revela-se agora, mandou para a vala comum cerca de 3.000 pessoas que possuíam identificação quando morreram nos últimos 15 anos na capital paulista.
Os "indigentes com RG" foram descobertos numa investigação do Ministério Público de São Paulo, coordenada pela promotora Eliana Vendramini, que se dedica a descobrir o paradeiro de desaparecidos em São Paulo.
Ela custou a acreditar, mas descobriu que o próprio sistema funerário estatal pode ter sido responsável pelo "desaparecimento" de milhares de pessoas na capital.
Isso porque o Estado manda para as valas públicas os corpos não reclamados por parentes num prazo de 72 horas, mesmo se o morto estiver com o RG no bolso. Vale-se de norma estadual de 1993, criada no governo Fleury (PMDB).
Faz isso sem tentar avisar qualquer parente, embora tenha dados de todos os mortos. Assim, deixa famílias numa busca sem fim.
Os enterros são realizados em parceria com o Serviço Funerário Municipal nos cemitérios 1 e 2 da Vila Formosa, na zona leste da cidade –onde os corpos chegam nus em caixotes de madeira com tampas de papelão.
Antes, também eram enterrados no cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona norte.
A responsabilidade pelos casos investigados pelo Ministério Público é do SVO (Serviço de Verificação de Óbitos), órgão ligado à Faculdade de Medicina da USP.
O órgão atende casos de mortes naturais, em que não há suspeita de violência, mas que necessitam de investigação da causa do óbito.
Agora, o Ministério Público quer saber por que o Estado não procurou as famílias dos mortos identificados.
Ao contrário da Promotoria, a direção do SVO entende que a lei não o obriga a procurar os familiares.
Diz ainda que não tem equipes para executar essa tarefa e que está disposto a colaborar com a investigação do Ministério Público.
À Promotoria, o SVO afirmou que não tinha informações suficientes para chegar aos parentes. "Mas é tão possível localizar as famílias que nós estamos conseguindo", contesta a promotora.
Vendramini diz ainda que, além da Constituição Federal, que em seu artigo 1º trata da "dignidade da pessoa humana", o Código Civil obriga o serviço a fazer essa comunicação, porque o corpo pertence à família.
"É uma questão óbvia. Vai ter uma lei para dizer o óbvio? Vai ter uma lei para dizer: 'Não enterre um corpo identificado sem avisar a família?'", questiona.
Outro problema é o fato de o SVO ser desconhecido da maioria da população, que, em geral, procura familiares desaparecidos apenas no IML –que é encarregado de lidar exclusivamente com mortes violentas ou com corpos sem identificação.
O Ministério Público quer acabar com as procuras desnecessárias das famílias e pôr fim aos enterros sem aviso.
Primeiro, está cruzando a lista dos cerca de 3.000 "indigentes identificados" que passaram pelo SVO com a lista de desaparecidos do Estado de São Paulo.
O objetivo é saber quantas famílias ainda estão buscando seus familiares para dar-lhes a notícia da morte e limpar os nomes que inflam a lista de desaparecidos.
João Rocha estava nessa lista e faz parte da primeira família avisada.
Nas últimas duas semanas, a Folha localizou outras quatro famílias. Nenhuma delas foi procurada pelos serviços do Estado e os parentes foram enterrados como indigentes.
NAS DELEGACIAS
O Ministério Público também vê problemas no trabalho da Polícia Civil.
Segundo a legislação, a polícia é obrigada a registrar boletins de ocorrência das mortes antes de enviar os corpos para o SVO. Da mesma forma, a polícia registra o desaparecimento quando as famílias dão queixa numa delegacia.
Porém, em todos os casos analisados pela Folha, os dados dos boletins de ocorrência –de morte e de desaparecimento– não foram cruzados, o que teria encerrado as buscas das famílias.
Três das cinco famílias procuradas pela Folha, que tiveram parentes ou amigos desaparecidos, disseram desconhecer a existência do SVO. Nesses casos, os reclamantes ou ainda procuravam os desaparecidos ou já tinham desistido da busca.
Em um caso, o parente havia morrido também. Em outro, a filha encontrou o pai 20 dias após a morte, já enterrado como indigente. Buscou ajuda até de um pai de santo.
Há ainda um número desconhecido de pessoas identificadas e enterradas como indigentes pelo IML, vítimas de violência ou de acidente.
Editoria de Arte/Folhapress | ||