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    Depoimento: O 'realismo fantástico' dos imigrantes no Peru

    LUCAS FERRAZ
    AVENER PRADO
    ENVIADOS ESPECIAIS AO PERU

    27/05/2014 12h34

    Gabriel García Márquez não gostava do rótulo "realismo fantástico", que ele deu vida e que marcou profundamente a literatura latino-americana. "É só realismo, a realidade que é mágica", dizia o escritor colombiano, morto no mês passado.

    Ao chegarmos no Peru para acompanhar o tráfico de imigrantes até o Brasil, a frase de García Márquez ecoava a cada instante.

    Tudo parecia um pouco fantástico: a polícia peruana intimamente ligada aos "coiotes", o aliciamento escancarado de imigrantes, como se fossem produtos a serem levados de um terminal a outro, a hospedaria-prisão, os peruanos totalmente indiferentes aos "negritos", como eles chamam haitianos e africanos que passam por ali rumo ao Brasil.

    Logo na primeira noite em Puerto Maldonado, fomos levados por um peruano (que conhecia muito do funcionamento da rede de "coiotes" na região e que foi o nosso anjo da guarda em toda a estada no país) a três diferentes hotéis na periferia da cidade. Em todos eles haviam haitianos ou senegaleses trancafiados, à espera da viagem até a fronteira brasileira.

    No primeiro, a Hospedaria Monterrico, onde iríamos nos hospedar e ver haitianos mantidos em cárcere privado, nos apresentamos à procura de um quarto. O discurso seria o mesmo em todos os hotéis baratos que visitamos: éramos estudantes brasileiros, retornando de Cusco (distante 461 km de Puerto Maldonado) para o Brasil, e precisávamos de um quarto só para uma noite.

    Quando entramos no pátio interno do recinto, a surpresa: dizeres em francês (língua oficial do Haiti e do Senegal) espalhados por todas as paredes e vários imigrantes negros na porta dos quartos. Eles foram impedidos de circular pelo local enquanto estivemos ali. A Hospedaria Monterrico era do ramo.

    Por pessoa, a noite na Monterrico sairia por 10 soles (moeda peruana), algo como R$ 9. Logo voltaríamos, dissemos.

    A segunda hospedaria, também numa rua de terra da periferia de Puerto Maldonado, não muito distante da primeira, as responsáveis (uma senhora de uns 50 e poucos anos e duas mulheres mais jovens, que pareciam filhas) ficaram muito desconfiadas com a nossa presença: "Como chegaram aqui? Quem indicou a hospedaria?".

    De fato, não havia nenhuma placa ou letreiro que mostrasse que em cima daquele precário bar funcionava uma hospedaria ou algo do tipo.

    Elas continuaram o interrogatório: "Em qual ônibus de Cusco vocês chegaram? Que horas?". Por fim, elas disseram não haver quarto disponível. Do bar, na parte de baixo, não vimos nada, mas foi possível escutar as vozes no piso superior.

    Dois dias depois, sem saber, teríamos uma nova surpresa ao sermos levados àquele mesmo lugar.

    A POLÍCIA

    Em toda nossa apuração para a reportagem publicada nesta terça-feira (27) na Folha, ouvimos dezenas de relatos de imigrantes –e também de peruanos– relatando como o tráfico de imigrantes ocorre com a participação direta dos policiais do Peru. Já na fronteira, na cidade de Iñapari, a primeira do Peru após o Acre, muitas pessoas nos alertaram sobre a polícia peruana. Um recifense boa praça que encontramos na fronteira muito nos alertou para os roubos praticados pelos próprios policiais.

    Em Puerto Maldonado, entrevistamos Washington Luza, chefe do Ministério Público de Madre de Dios (departamento cuja capital é Puerto Maldonado). Após uma longa explicação sobre os problemas da região –o principal, segundo ele, é a exploração ilegal de ouro no rio Madre de Dios, que envolve entre 40 e 60 mil pessoas– ele entrou no que nos interessava, o tráfico de imigrantes até o Brasil.

    "Não há nenhuma investigação em curso, pois não há nenhuma denúncia", disse.

    Apesar de o esquema funcionar abertamente na cidade, Luza afirmou que faltava ao Ministério Público peruano braços para realizar uma investigação. E ressaltou que a polícia também nunca abriu um inquérito sobre o tema, o que explicaria, em parte, a falta de atuação do Ministério Público. Por fim, ele sugeriu que falássemos com o coronel Dario Calvo Jara, chefe da Polícia Nacional do Peru em Madre de Dios, que poderia nos contar mais sobre o assunto.

    A conversa com Jara foi marcada para às 21h de uma quinta-feira. Na chegada ao prédio da polícia, perdemos o que seria uma grande imagem do realismo fantástico peruano: um sentinela que guardava a entrada do prédio cochilava num banco de madeira da entrada, com um metralhadora embaixo dos braços. Não houve tempo para o registro, mas nos apresentamos e ficamos de papo com o policial, que se apresentou como soldado Torres. Ele contou um pouco do que sabia da atuação dos "coiotes" na cidade. Disse até conhecer um deles.

    O coronel Dario Calvo Jara, com um bigode vistoso, chegou minutos depois. Muito educado, explicou que "infelizmente há policiais corruptos na corporação". "Considero isso um vício, um vício terrível. Mas há também um problema legal, nossa legislação não é rigorosa com esse tipo de crime", comentou, jogando a responsabilidade na falta de ação do Ministério Público. Foi o que disse.

    Antes de deixarmos o prédio, o soldado Torres começou a cochichar mais algumas coisas sobre o tráfico de imigrantes. Disse que poderia nos levar a um coiote –"assim vocês podem fazer uma grande reportagem!." Pediu que ligássemos para ele às 2h da manhã, quando ele deixaria o plantão.

    Ligamos no horário combinado, mas a atitude do soldado era suspeita. Ele perguntava insistentemente em qual hotel estávamos hospedados, disse que passaria lá para nos levar ao "coiote" amigo, nos arredores de Puerto Maldonado.

    Como o encontro parecia uma emboscada, combinamos com Torres de nos falar novamente na manhã do dia seguinte. Assim poderíamos marcar um novo encontro, durante o dia. Mas na manhã seguinte Torres desapareceu.

    Editoria de Arte/Folhapress

    A VIAGEM

    O adesivo indicava o trecho "Puerto Maldonado - Iñapari". Van azul, suspensão baixa, cortinas desbotadas. Faltava acompanhar um grupo de haitianos sendo levados para o Brasil. Após negociar com Walter, o motorista peruano, ele concordou em nos levar no seu carro, com um grupo de haitianos.

    Willi, como ele chamava o "coiote" com quem falava a todo momento no telefone, indicou a Walter o endereço da hospedaria. Quando chegamos, vimos que era a mesma em que estivemos dois dias antes, em cima de um bar. Descemos e esperamos na esquina, para evitar problemas. O "coiote" Willi rodava de moto pelas ruas de terra, acompanhando de longe a movimentação.

    Em menos de um minuto, embarque feito, Walter manobrou a van e subimos. Com exceção do motorista, todos estávamos assustados e nervosos. Na parte de trás do veículo, os 11 haitianos apreensivos, com as cortinas fechadas, segurando os poucos pertences.

    A van se transformou em uma máquina do tempo, apesar de o velocímetro não funcionar: a seleção de quatro músicas pop se repetiu por pelo menos uma hora. Depois, Walter colocou uma coletânea de música andina, que nos acompanharia até o final.

    Walter comentou que já levou centenas de imigrantes até a fronteira brasileira. De vez em quando, disse, algum "coiote" o chamava para a viagem.

    A primeira parada no posto policial, logo na saída de Puerto Maldonado, foi rápida e sem propina. Alguns quilômetros depois, no povoado de Planchón, às margens da Interoceânica, Walter molhou a mão dos policias pela primeira vez. "Às vezes eles pedem 50 soles [cerca de R$ 44]", disse o motorista. "Foi o que deixei". Nessas viagens, o motorista leva a propina da polícia à parte.

    Como viajávamos na hora do almoço, Walter comemorou a passagem tranquila por um outro posto, onde a inspeção, segundo ele, seria obrigatória. "Eles devem estar comendo", observou.

    Já tínhamos percorrido mais de 160 dos 233 km de Puerto Maldonado até a fronteira quando uma patrulha piscou o farol. Paramos no acostamento.

    Eram dois policiais. Conseguimos identificar apenas um, que se chamava Álvaro. Ele se irritou ao ver que estávamos filmando com os celulares. "Vocês são jornalistas? Por que não gravam coma as câmeras? A imagem certamente ficará melhor", disse, irônico. Ele também tirou o celular e começou a nos gravar.

    Além do excesso de passageiros no carro, o policial disse que os haitianos estavam irregulares. Eles deveriam voltar a Puerto Maldonado para, numa delegacia da cidade, tirar um certificado e aí sim viajar até o Brasil. Sem visto, os haitianos da van, como todos os demais imigrantes negros, cruzavam o Peru em situação irregular.

    Mas os 11 haitianos tinham o tal certificado exigido pelo policial, que fora emitido na fronteira entre Equador e Peru. Ponderamos que esse documento permitia aos imigrantes transitar pelo Peru, segundo a lei local, mas o policial nada respondeu.

    Walter foi o único que saiu do carro. Seguiram-se alguns minutos de tensão. Teríamos que voltar para Puerto Maldonado.

    Logo Álvaro voltou para conversar conosco, na van, deixando Walter e o outro policial na patrulha, do outro lado da estrada. "Esses imigrantes passam por uma situação terrível para chegar no Brasil. Veja a situação deles, parecem animais. É desumano", falou ele.

    "Algumas vezes, é preciso não observar as leis e ter um pouco de humanidade. Se eu fosse cumprir com minha obrigação, eles teriam de voltar para Puerto Maldonado. Mas vou abrir uma exceção, pois vejo que a situação deles não é boa", completou o policial Álvaro, com um cinismo radiante nos olhos.

    "Boa viagem, senhores. Nos vemos no Brasil, na Copa do Mundo", riu Álvaro, despedindo-se.

    Walter voltou sorrindo e partimos, com a música andina embalando os quilômetros finais. Em Iñapari, na fronteira, último posto de controle do trajeto, os policiais peruanos nem checaram os documentos dos haitianos.

    "Eles agora estão livres", comentou Walter, sempre sorrindo, enquanto cruzávamos a ponte que separa Brasil e Peru. Os haitianos abriram as cortinas, e sorriram pela primeira vez.

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