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    Sem dinheiro, haitianos passam fome em viagem do Acre a São Paulo

    LUCAS FERRAZ
    AVENER PRADO
    DE SÃO PAULO

    29/05/2014 02h00

    Terminal da Barra Funda, zona oeste de São Paulo, manhã de quarta-feira, último dia 21. Setenta e uma horas depois de serem despachados do abrigo de Rio Branco, no Acre, 37 imigrantes do Senegal e Haiti desembarcam maravilhados com a cidade grande.

    Alguns ainda têm fome, muitos estranham o frio, mas todos parecem felizes.

    O haitiano Charles Nacius Macius, 39, com sua boina cinza e a mesma roupa dos últimos três dias, perguntava mais uma vez: "E agora, o que fazemos?".

    Ninguém tinha resposta. O silêncio e o desamparo eram representativos da saga dos imigrantes até o Brasil e das difíceis situações que enfrentam atrás de dias melhores.

    A Folha viajou em um dos ônibus que saem quase diariamente de Rio Branco para São Paulo com os estrangeiros relegados à própria sorte.

    O governo do Acre não disponibiliza qualquer estrutura mínima para a viagem de 3.465 km. Sem dinheiro e sem comida, a maior parte dos 42 passageiros passou fome durante o trajeto.
    Até água faltou no ônibus.

    O Acre sequer os municia com informações básicas sobre o destino final —os passageiros nem sabiam que há um abrigo em São Paulo para acolhê-los.

    Muitos se surpreenderam quando descobriram que a viagem duraria três dias, e não algumas poucas horas, como pensavam.

    Em resposta, o governo do Acre informou que não tem condições de gastar mais com os imigrantes.

    A VIAGEM

    A organização da viagem depende da documentação dos imigrantes. Inicialmente, o embarque estava previsto para a noite de sábado, dia 17. Na hora marcada, a partida foi adiada: 12 vagas do ônibus fretado ainda estavam desocupadas.

    Na manhã seguinte, após a convocação feita em frente aos galpões de bois e cavalos onde os imigrantes estão abrigados, o ônibus estava completo. Além dos repórteres da Folha, embarcaram 42 pessoas: 17 senegaleses e 25 haitianos. Predominavam os homens. As mulheres eram apenas sete.

    Na primeira parada para comer, após os primeiros cem quilômetros, o problema que se repetiria em toda a viagem até São Paulo: sem dinheiro, a grande maioria dos passageiros, sobretudo os haitianos, nada comia.

    Os senegaleses, em geral, tinham alguma condição e se alimentavam, mas sem dividir com ninguém.

    A reportagem e alguns dos motoristas que se revezaram no ônibus pagaram refeições para os haitianos. Um ou outro dono de comércio na beira da estrada também se sensibilizou e forneceu comida.

    AVENTURA

    Ao longo dos 3.465 km, perrengues esperados em um trajeto tão longo e em rodovias tão danificadas como as da região Norte: um pneu furado, calor e mosquitos amazônicos endiabrados, além de longas esperas.

    Editoria de arte/Folhapress

    Na primeira, foram mais de duas horas e meia aguardando a balsa para cruzar o rio Madeira, em Rondônia. A última, quando o ônibus entrou no Estado de São Paulo, na cidade de Presidente Epitácio, a Polícia Militar segurou o veículo por quase uma hora. Por ser rota do tráfico, ela queria inspecionar o ônibus, mas tão logo um policial entrou, desistiu da revista.

    As condições de higiene também eram precárias. O banheiro do ônibus convencional rapidamente ficou inutilizável. Em 71 horas de viagem, só os repórteres e um senegalês tomaram um único banho, na rodoviária de Pontes e Lacerda (MT).

    Pelo caminho, ficaram cinco imigrantes, um em Porto Velho e quatro em Cuiabá. Segundo disseram, tinham conhecidos ou promessa de trabalho nessas cidades.

    "Não acredito que chegamos", disse o haitiano Jeremie Dozina, 29, que a Folha encontrou pela primeira vez na fronteira brasileira, quando ele acabava de entrar no país. "Meu maior medo era não chegar aqui", contou, já na Barra Funda.

    A confusão de imigrantes na estação paulistana comoveu alguns passantes, que contribuíram com dinheiro para que eles embarcassem num metrô até a Sé.

    De lá, a reportagem os direcionou até a Missão Paz, na rua do Glicério. "A vida do imigrante é um eterno recomeçar. Agora vou tentar encontrar minha irmã, que está em Santa Catarina", despediu-se Dozina.

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