• Cotidiano

    Sunday, 05-May-2024 22:41:41 -03

    Depoimento: Rio Branco - São Paulo, notas de uma viagem

    LUCAS FERRAZ
    AVENER PRADO
    DE SÃO PAULO

    29/05/2014 14h52

    Para os imigrantes mantidos no abrigo em Rio Branco, no Acre, a partida para São Paulo é o momento mais esperado. Para eles, inicia-se com a viagem um novo ciclo no Brasil.

    Acertamos com o governo do Acre de acompanhar os imigrantes em um dos ônibus que quase diariamente saem de Rio Branco. Inicialmente, a viagem foi marcada para a noite de sábado, dia 17 de maio. Na hora prevista, contudo, um funcionário informou que o ônibus havia quebrado.

    Na verdade, como informara minutos depois o senegalês Dame Gueye, 29, que está no Brasil há quase dois meses e se tornou uma espécie de coordenador informal do abrigo (formado em comércio exterior, ele domina sete idiomas), faltaram 12 imigrantes para completar o ônibus, que só sai completo.

    A partida foi adiada para a manhã seguinte, dia 18. Às 11h de domingo, o próprio Gueye foi o responsável pela convocação dos passageiros, gritando o nome de cada um dos viajantes num megafone.

    Além de nós dois, embarcaram 42 pessoas (17 senegaleses, 25 haitianos). A previsão era percorrer os 3.465 km em mais de 70 horas. Desembarcamos no Terminal da Barra Funda, em São Paulo, na manhã de quarta-feira (dia 21). Foram 71 horas de viagem.

    Pesquisa do governo do Acre feita com cerca de 300 imigrantes mostra que 60% deles querem ir para São Paulo. Em segundo lugar estão os indecisos, 10%, que ainda não sabem o destino. Ainda assim, eles também embarcam para a capital paulista.

    Era o caso de Charles Nacius Macius, 39, que viajou conosco: "Um amigo vive no Brasil, mas não sei em qual cidade. Vou sem dinheiro, na esperança de Deus".

    A seguir, algumas notas da viagem.

    A BALSA

    No final da tarde de domingo (dia 18), primeiro dia de viagem, paramos em Vista Alegre do Abunã, Rondônia, para fazer a travessia do rio Madeira em uma balsa. Os imigrantes não acreditavam que o ônibus, assim como as carretas e demais carros que esperavam na fila, iriam subir na embarcação para cruzar o rio.

    As águas turvas do Madeira encantaram haitianos e senegaleses. O único problema, assim que descemos do ônibus, foi um repentino e prolongado ataque de muriçocas, que fizeram a festa nas duas horas e meia de espera pela balsa.

    AINDA A CHEIA

    Por causa da cheia do rio Madeira, que ilhou o Acre há alguns meses, a BR-364, entre Rio Branco e Porto Velho, ficou ainda mais danificada. Pastos ao redor da estrada ainda estão com água. E em muitos lugares, o asfaltou sumiu. Pedras foram colocadas para deixar a rodovia transitável. Em alguns trechos, os veículos precisavam andar na primeira marcha. Dezenas ficam pelo meio do caminho, quebrados.

    CUIABÁ

    Uma hora depois de sairmos de Rio Branco, o haitiano Marc Constant François, 49, começou a perguntar, apontando para um papel escrito à lápis: "Cuiabá? Cuiabá?". Ele iria ficar na capital de Mato Grosso.

    Explicamos que só chegaríamos a Cuiabá na madrugada de terça-feira, ainda faltava mais de um dia de viagem. Desconfiado, a cada parada ele perguntava novamente: "Cuiabá? Cuiabá?".

    Com tamanha ansiedade e medo de passar de seu destino, François sentou-se na escada na frente do ônibus, ao lado do motorista. A desculpa era escorar a porta que dava acesso ao corredor, que estava estragada e não fechava. Mas ele não dormiu. Conferia todas as placas na estrada para tentar encontrar Cuiabá.

    SOB O SOL

    Estávamos chegando em Vilhena (RO), quase na divisa de Mato Grosso, quando ouvimos um estouro. João Laquímia Neto, 54, o motorista que conduzia desde Ji-Paraná, logo encostou. Um pneu traseiro estava dilacerado.

    Com tantos homens, a troca até que foi rápida. Um dos mais dedicados era Marc Constant François, louco para chegar a Cuiabá e que naquela altura já tinha se tornado chapa de viagem do motorista.

    Após uma hora parados sob o sol do meio-dia, a viagem prosseguiu. Todos estávamos encharcados de suor e cada vez mais picados pelos mosquitos.

    BANHO, FINALMENTE

    Paramos à noite na rodoviária de Pontes e Lacerda (MT), no segundo dia de viagem. Foi o único banho em mais de 70 horas. Além de nós dois, só um senegalês enfrentou o banho frio, certamente um dos melhores que já tomamos. Infelizmente, o restante dos passageiros não se banharam.

    Na cidade, antes de partirmos, mais uma troca de motorista. Foi-se embora João Laquímia Neto, o mais simpático de todos eles. João, inclusive, trocou telefone com Marc Constant François.

    O novo condutor, contudo, não deixou François continuar viagem na frente, sentado na escada. O haitiano até que tentou usar a desculpa da porta, mas o motorista conseguiu prendê-la com uma sacola.
    François se acalmou. Avisamos que Cuiabá era a próxima parada.

    FRANÇOIS AVISTA CUIABÁ

    Editoria de arte/Folhapress

    Com uma pasta branca com seus documentos e uma mala pequena, François desceu na rodoviária com outros três senegaleses. Eles tinham conhecidos ou promessas de emprego na cidade.

    Após se despedir, François caminhou alguns metros e parou. Do pátio da rodoviária, ficou esperando o ônibus partir, acenando de longe com as mãos.

    CADA CABEÇA, UMA SENTENÇA

    Como a maioria dos imigrantes não tinha dinheiro para comer nas paradas, nós e alguns dos motoristas tratávamos de ajudá-los, comprando refeições. Nos restaurantes na beira da estrada, explicávamos a situação aos proprietários, que quase sempre davam um desconto ou também contribuíam.

    Na parada em São Gabriel do Oeste (MS), contudo, o dono do restaurante foi ríspido, dizendo que não iria ajudar –nem vender a refeição para os imigrantes com desconto. "Esses imigrantes comem demais", disse. A alternativa foi buscar pães e salame num mercado próximo.

    Duas paradas depois, em Nova Andradina (MS), falamos novamente com o dono do restaurante sobre a fome dos imigrantes. E relatamos o que havia acontecido em São Gabriel do Oeste. O homem gelou. Sérgio Cavalieri, 65, de Nova Andradina, era pai do proprietário que se recusou a ajudar os imigrantes.

    Sem graça, ele doou vários pratos de comida. "Cada cabeça, uma sentença", limitou-se a dizer.

    BUSÃO INSALUBRE

    Ninguém, entre os 44 passageiros, tinha passado tanto tempo dentro de um ônibus. Após as primeiras 24 horas, os reflexos eram visíveis: corpo doendo, pernas inchadas, sujeira, banheiro inutilizável e até falta de água, que era reposta pela empresa em algumas das paradas, mas que nunca era suficiente para saciar a sede de todos.

    O ar condicionado, sobretudo à noite, incomodava os haitianos e senegaleses, mas era a única alternativa para tentar aliviar o mau cheiro. A situação de um haitiano era tão crítica que ele passou a maior parte das 71 horas de viagem só, sem nenhum companheiro ao lado.

    NA ROTA DO TRÁFICO

    Entrar no Estado de São Paulo foi um grande alívio. Era a reta final da viagem. Mas logo na primeira parada, em Presidente Epitácio, após o rio Paraná, fomos parados numa barreira da Polícia Militar. Esperamos uma hora pela chegada de um policial, que avisou que iria revistar o ônibus, já que aquele trecho era rota utilizada para o tráfico de drogas.

    Tão logo entrou no ônibus, contudo, o PM desistiu da revista. O mau cheiro no interior do veículo chegara no seu ápice.

    VIAGEM MAIS CARA

    O governo do Acre freta um ônibus convencional para enviar os imigrantes a São Paulo. O contrato, firmado com a empresa Eucatur, diz que cada viagem, que deve ser paga à vista, sai por R$ 32 mil. O valor, dividido para cada um dos 44 passageiros, é de R$ 727.

    A mesma Eucatur, contudo, vende passagens comerciais para o trecho Rio Branco–São Paulo por R$ 427. E com a diferença de que a viagem é feita num ônibus semi-leito, muito mas confortável do que o convencional. Se comprasse diretamente na rodoviária, o governo poderia economizar R$ 13.000 a cada ônibus completo.

    Antônio Torres, secretário de Desenvolvimento Social do Acre, disse que é impossível para o governo comprar algumas poucas passagens por dia. "Quando começamos o fretamento, não havia ônibus comercial saindo de Rio Branco por causa da cheia do rio Madeira", disse. Ele ressaltou que o fretamento atende, de uma vez só, um número muito maior de imigrantes.

    LATA VELHA

    O ônibus da Eucatur que nos trouxe a São Paulo era um modelo 1995, já fora de circulação em viagens comerciais, sobretudo em trajetos tão longos como Rio Branco–São Paulo. Apesar do desconforto e de um pneu furado, o ônibus andou bem. Os motoristas elogiaram o desempenho da "lata velha", como muitos se referiam ao veículo.

    [an error occurred while processing this directive]

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024