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    Plano Diretor deveria desestimular mais o carro, diz arquiteto francês

    ANDRÉ MONTEIRO
    DE SÃO PAULO

    20/06/2014 02h00

    O arquiteto francês Luc Nadal, especialista em projetos urbanos, defende os princípios do Plano Diretor elaborado pela Prefeitura de São Paulo, mas avalia que ele deveria ser mais agressivo na limitação de vagas de garagem e na destinação de áreas para moradia popular.

    O projeto, que norteia o crescimento da cidade nos próximos 16 anos, pode passar por segunda votação na Câmara na semana que vem.

    Entre os pontos principais, ele prevê um estímulo à construção de prédios perto de eixos de transporte público, como corredores de ônibus e estações de metrô.

    Doutor em urbanismo pela Universidade Columbia (EUA), Nadal é diretor do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento). Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

    Wanezza Soares/Folhapress
    O arquiteto Luc Nadal, diretor técnico do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento) em Nova York
    O arquiteto Luc Nadal, diretor técnico do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento)

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    Folha - O sr. defende o conceito de desenvolvimento orientado ao transporte. O que é?
    Luc Nadal - O conceito é manter a cidade o mais compacta possível. A construção perto de onde já existe transporte deve ser priorizada. É importante controlar a expansão urbana para áreas para onde é muito difícil levar um bom transporte público e outros serviços. Quanto mais espalhada a cidade, maior o custo de conectar os lugares com energia, água, ruas. Além disso, é preciso ter boas condições de caminhada para as pessoas chegarem ao transporte público. Elas precisam se sentir seguras em termos criminais e de segurança viária, com boas calçadas e tráfego amigável.

    Em São Paulo as calçadas são de responsabilidade do proprietário, e não da prefeitura. Como resolver?
    É uma questão de uma boa regulação e fiscalização. Em Nova York, onde eu vivo, é o mesmo, as calçadas são construídas e mantidas pelos proprietários. Dá trabalho, mas se não for feito resulta em multas. Então acho que é preciso esforço e alguma capacidade do governo para impor as regras. Aparentemente aqui está faltando essa capacidade, então pode ser uma solução transferir essa responsabilidade para o governo. Mas isso precisa ser estudado com cuidado, pois pode ser que o governo também não tenha esse capacidade. Seriam necessárias receitas adicionais, então é provável que de alguma forma isso implique em mais impostos. É uma questão complicada, cada cidade precisa encontrar uma abordagem própria, ver o que funciona. Em Paris, por exemplo, a calçada é de responsabilidade do governo, ele cuida da rua de muro a muro. Isso funciona também.

    Críticos dizem que o plano deveria ter regras específicas segundo o tipo de transporte público nos eixos, e não números gerais para toda a cidade. O que o sr. acha?
    Há dois elementos. Queremos um desenvolvimento que não gere tráfego de carros, que é a praga das cidades: congestionamento, poluição, problemas de segurança viária e por aí vai. Então deve-se não eliminar, mas reduzir o tráfego de carros tanto quanto possível. Por outro lado, queremos cidades que sejam compactas, que não se espalhem e se tornem dependentes do carro. Então queremos construções que não precisem de carros, por isso elas devem ser articuladas com a capacidade do transporte público. Pode haver áreas históricas com particularidades que se quer preservar, o que deve ser o caso de São Paulo, mas na maioria dos bairros onde não há essas características sou favorável a permitir construções altas, desde que com restrições muito estritas na quantidade de áreas de estacionamento que vão oferecer. E aí o mercado vai fazer seu papel, se o acesso por transporte público não for bom, as construtoras terão dificuldade em vender unidades. Quando o mercado consegue trabalhar bem com objetivos benéficos para toda a sociedade, é melhor deixar com ele. A regulamentação deve intervir quando existe uma disfunção entre as forças do mercado e o interesse público.

    No plano, há um incentivo financeiro para que novos prédios tenham no máximo uma vaga de garagem por unidade, ao contrário de hoje, em que há um mínimo.
    É um grande passo, mas tenho reservas. Quanto mais se construir, mais vagas de estacionamento vão existir. Devemos pensar se há calçadas suficientes, ciclovias e espaço para transporte público. Uma vez garantido espaço a esses meios de baixo impacto ambiental, vemos quanto sobra para carros. A partir daí, deve-se determinar a quantidade de vagas de estacionamento em cada área. Provavelmente será menos que uma por unidade.

    O que acha das faixas exclusivas para ônibus à direita implantadas em São Paulo?
    Não conheço todos os detalhes, então não gostaria de avaliar o caso específico de São Paulo. Mas, no geral, o que faz sentido é ter um sistema com alta capacidade, velocidade e qualidade, e isso não pode ser atingido com faixas de ônibus do lado direito, porque várias coisas acontecem pelo lado do meio-fio: caminhões, carga e descarga, conversões, carros parando para alguém descer. O único sistema que realmente funciona é o de faixas exclusivas no meio das vias, com conversões à esquerda controladas. É o ideal. Agora, entendo que esses corredores de ônibus rápidos são empreendimentos que requerem planejamento, tempo. Entre uma coisa e outra, faixas são melhores que nada.

    Outra discussão sobre o plano trata dos bairros já consolidados. Uma corrente defende que eles sejam preservados, mas o projeto pretende adensar as quadras próximas de eixos de transporte. Qual é sua visão sobre esse tema?
    Se uma área tem valor histórico ou cultural, defendo preservá-la como parte do patrimônio da cidade. Onde não há essas características, sou favorável a permitir construções altas, desde que com restrições muito estritas na quantidade de vagas de estacionamento. Há sempre uma tensão com os moradores de uma área, a primeira atitude deles é tentar congelar o desenvolvimento. É preciso negociar e buscar equilíbrio para que cada parte da cidade contribua para o coletivo.

    *Há bons exemplos no mundo de projetos implantados com prioridade ao transporte?
    Há muitos exemplos mundo afora. Um deles é o bairro de Hammarby, em Estocolmo (Suécia). Ele fica nos limites da cidade, mas é bem próximo do centro. Era uma região essencialmente industrial em que a cidade decidiu construir um bairro totalmente novo no fim dos anos 1990. Um sistema de transporte de alta capacidade foi planejado imediatamente, no caso foi um VLT [Veículo Leve sobre Trilhos], mas que trafega por vias também usadas por ônibus. É um projeto bem sofisticado, de alguns quilômetros quadrados, onde foram construídos prédios de uso misto, residencial e comercial. O ponto fraco é que ele não tem uma integração social muito alta, em termos de renda. É uma área cara, mas muito bem feita do ponto de vista do design urbano.

    Como é possível evitar que a população mais pobre seja expulsa das áreas onde serão construídos novos prédios?
    É importante garantir um mix de população com diferentes níveis de renda. Isso requer uma política deliberada, em parte com regulamentação, em parte com incentivo financeiro para empreendedores e investidores. Construir um prédio novo não é barato, a população de baixa renda não consegue pagar, então de alguma forma deve haver subsídios cruzados.

    Uma das regras do plano é que os grandes empreendimentos terão que reservar 10% de sua área para moradia popular. O que o sr. acha da ideia?
    Parece um bom primeiro passo. Mas o percentual de 10% ainda é relativamente baixo. Na França, há uma lei federal que determina que 20% da área de cada distrito, algo como as subprefeituras em São Paulo, devem ser destinados a moradia para baixa renda. Os distritos que não atingem o índice são multados, precisam construir mais, e o valor das multas é revertido para subsidiar a moradia nos distritos que atingiram os 20%. E agora eles discutem aumentar para 25%. Em Nova York, também há uma política que exige de novos empreendimentos, grandes e médios, índices de 20% das unidades para o que eles chamam de moradia a preço acessível, que atinge não somente os mais pobres. Há uma escala de renda.

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