• Cotidiano

    Saturday, 18-May-2024 05:44:03 -03

    Revisão da lei do estrangeiro será baseada nos direitos humanos

    ADRIANA FARIAS
    DE SÃO PAULO
    SEVERINO MOTTA
    DE BRASÍLIA

    30/08/2014 02h00

    Criada em 1980 durante a ditadura militar, a legislação que regula a situação jurídica dos estrangeiros no Brasil será revista pelo governo federal com a perspectiva dos direitos humanos.

    A elaboração do Estatuto do Estrangeiro esteve subordinada aos temas de segurança nacional e proíbe, por exemplo, que o estrangeiro organize ou participe de passeatas. A concessão de visto é "condicionada aos interesses nacionais" e não interpretada como um direito do migrante.

    A proposta agora é mudar o tratamento dado ao estrangeiro e agilizar os processos de regularização por meio da criação de um órgão civil para atendimento dos migrantes.

    Formado em história e comunicação social, o pastor boliviano Zacarias Saavedra, 61, levou seis anos para conseguir se regularizar. Veio em busca de tratamento de saúde para o filho.

    "Foi muito difícil. Além do custo [com taxas e multa por estar irregular], ia direto na Polícia Federal e a cada ida era uma exigência diferente", diz.

    Durante o período irregular, não conseguiu um emprego formal e teve que juntar latinhas para sobreviver. Agora, atua como agente social orientando os compatriotas sobre a regularização.

    Apu Gomes/Folhapress
    O pastor boliviano, Zacarias Saavedra 61, que teve dificuldades para se regularizar no país
    O pastor boliviano Zacarias Saavedra, 61, que teve dificuldades para se regularizar no país

    Segundo o Cami (Centro de Apoio ao Migrante), os estrangeiros têm esperado até um ano pelo RNE (Registro Nacional do Estrangeiro) e arcam com ao menos R$ 1.200 no processo.

    Enquanto aguardam, recebem um protocolo atestando o pedido de regularização, mas esse documento é uma "filipeta" de papel (às vezes vem sem foto) que não é reconhecido pela sociedade.

    "O protocolo poderia ser uma solução, mas virou um problema porque não se consegue nem abrir uma conta no banco com ele. Até a polícia quando para a pessoa acha que é falso", diz o padre Roque Patussi, coordenador do Cami.

    Para sanar situações como essa, por exemplo, o anteprojeto feito por uma comissão de especialistas a pedido do Ministério da Justiça propõe criar um visto temporário de um ano para que o estrangeiro possa vir ao Brasil procurar trabalho legalmente.

    Atualmente, a regularização migratória está vinculada a uma oportunidade de emprego formal.

    A proposta também é dar acesso à rede de serviços sociais e básicos (educação, por exemplo) sem a obrigatoriedade de estarem regulares no país.

    O texto também propõe isenção do pagamento de taxas de regularização para aqueles que estiverem com dificuldades financeiras.

    Isso também evitaria que estrangeiros em busca de melhores condições de vida entrem com pedidos de refúgio (destinado somente aos que sofrem perseguição política/religiosa no país de origem), o que dá direito imediato ao trabalho provisório no país.

    "Nós precisamos reconhecer o direito do estrangeiro no Brasil. O Brasil é um país que acolhe o estrangeiro, que reconhece direitos. Nada mais justo que tenhamos agora uma nova legislação", disse o ministro José Eduardo Cardozo (Justiça).

    AUTORIDADE CIVIL

    Para efetivar as medidas, o anteprojeto propõe a implantação de uma autoridade migratória civil, que tiraria das mãos da Polícia Federal o trabalho administrativo de regularização dos estrangeiros.

    Com a criação desse órgão, na visão dos especialistas, evitaria que a chegada de um fluxo migratório provocasse uma acolhida desordenada como se deu a dos 400 haitianos vindos do Acre para São Paulo em abril deste ano.

    O texto foi recebido nesta sexta-feira (29) pelo ministro Cardozo, que chamou o Estatuto do Estrangeiro de "arcaico" e "muito defasado historicamente".

    "O Estatuto é o que chamamos de entulho autoritário. Ele vê o estrangeiro como ameaça e dificulta sua regularização", diz a professora da USP Deisy Ventura, uma das integrantes da comissão que redigiu a proposta.

    "Quem é que ganha com o migrante numa situação dessas? Só os coiotes", afirma Ventura.

    O anteprojeto será enviado a outros órgãos do governo que também atuam em áreas relacionadas à migração e, posteriormente, irá para o Congresso Nacional.

    A revisão da lei insere-se em um contexto de reformas migratórias em curso desde 2011, quando foi identificado o aumento dos fluxos migratórios no hemisfério Sul apontado por relatório da OIM (Organização Internacional dos Migrantes).

    Segundo a OIM, uma em cada 33 pessoas vive em um país diferente do que nasceu. São 232 milhões de migrantes internacionais e 51 milhões de pessoas forçadas a deixarem seus lares no mundo, aponta a ONU.

    De acordo com a Polícia Federal, há 1,08 milhão de imigrantes no Brasil. A maioria é de portugueses, bolivianos e japoneses.

    "A visão de que a questão migratória era um problema apenas da Europa e do EUA mudou. Agora é muito mais difusa ao passo que o Brasil ganha importância internacional", diz Ventura.

    ALGUMAS DAS PROPOSTAS DO ANTEPROJETO DE LEI DE MIGRAÇÕES:

    - Visto temporário de um ano para procurar emprego legalmente no Brasil;

    - Criação de um órgão civil para o processo de regularização migratória;

    - Concessão de residência deixa de ser discricionariedade do Estado e passa a ser um direito do migrante;

    - Acesso à educação, por exemplo, fica desvinculado da regularização migratória;

    - Criação de um mecanismo de acolhida humanitária para atender fluxos pontuais de migração internacional;

    - Migrantes com dificuldades financeiras passam a ser isentos do pagamento de taxas de regularização;

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024