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    Menino mora em barraca na mesma calçada de shopping de luxo em SP

    EMILIO SANT'ANNA
    DE SÃO PAULO

    05/11/2014 02h00

    Passa da meia-noite e um garoto brinca com seu carrinho no meio fio encharcado pela chuva. Corre, para, torna a correr. Volta e abre o zíper da barraca instalada quase imediatamente em frente ao shopping Higienópolis.

    Ali, ele guarda bem mais do que a dúzia de roupas doadas. Lá dentro, bem no coração do bairro de classe alta paulistano, G. construiu seu mundo.

    "Tenho toda a coleção do Toy Story aqui", ri de orelha a orelha. Apesar de seus 15 anos, ele ainda é criança. "Você já viu esse aqui?", pergunta. Em suas mãos, um punhado de brinquedos.

    Não lhe falta nada. Pelo menos, nada que ele sinta falta. "Ihhh, hoje almocei três vezes. Agora de noite só tenho biscoito, mas tô tranquilo", afirma. Se o sotaque não o entregasse, o biscoito –bolacha em bom "paulistanês"– o entregaria.

    Avener Prado - 4.nov.2014/Folhapress
    Brinquedos do menino que mora numa barraca em rua de Higienópolis, bairro nobre de SP
    Brinquedos do menino que mora numa barraca em rua de Higienópolis, bairro nobre de SP

    O menino é de Cachoeiras de Macacu, município próximo a Nova Friburgo, no Estado do Rio. Não é a primeira vez que foge de casa e vem parar em São Paulo. É a terceira.

    Velho conhecido dos moradores da rua Veiga Filho, ele teve sua história contada, em agosto, por "O Estado de S. Paulo", quando morava em cima de uma árvore em frente ao edifício Santa Emília, colado ao shopping.

    Alertada por uma moradora do prédio, sua mãe conseguiu juntar dinheiro e levá-lo para a cidade da região serrana fluminense, a mais de 500 km da capital paulista.

    Nem dois meses depois, G. voltou a São Paulo. "Peguei carona num caminhão de tomate. O motorista deixou e cheguei aqui todo 'entomatado", diverte-se.

    Mais uma vez na Veiga Filho, tratou de construir outra casa na árvore com restos de madeira -para desespero de parte dos moradores que desaprova sua permanência por ali. A presença do menino está longe de ser unanimidade entre os moradores do edifício.

    "Tem gente aqui no prédio que quer me matar. Queriam até colocar uma placa pedindo para não darem esmolas para ele, mas o dinheiro é meu e sempre vou ajudar", diz a aposentada Dulce Santucci, 80.

    Enquanto a chuva não deu as caras, o menino foi ficando. Mas no final de semana, quando ela finalmente resolveu aparecer, instalou-se o problema: era preciso arrumar um lugar para ele dormir.

    "No primeiro dia em que choveu ele estava aí todo encharcado. Agora, acho que alguém do prédio arrumou essa barraca", diz um segurança do shopping.

    Na verdade, a "casa" de G. veio de um desconhecido. "Uma BMW parou aí e um rapaz muito bem alinhado deixou a barraca", conta Dulce.

    Enquanto conversa com Folha, entretido em "seu mundo", o menino se perde a falar sobre a coleção de brinquedos.

    A decoração do centro de compras deixa claro que por ali já é Natal. G. não sabe bem o que quer, mas, se pudesse, compraria um Slinky -cachorro da série Toy Story. "Vou lá na Ri Happy, tio!

    Hiperativo, G. tomava medicamentos controlados quando estava em casa. Na rua, deixou pra lá.

    Talvez precise mesmo é de espaço e um tratamento alternativo, diz a terapeuta Luciana Sodré Cardoso, moradora do prédio.

    É ela quem todos os dias mantém a mãe do menino, um diarista de 38 anos, informada. Pelo Facebook, a mulher fica sabendo se ele está comendo e onde está dormindo. "Ele não obedece, já fiz de tudo. Meu medo é que alguém possa explorá-lo na rua", diz a mãe.

    Dentro da barraca, caprichosamente ele dispôs um colchonete e uma poltrona sem pés. Pendurado, o radinho de pilha não para nunca. "Conhece essa? Não?", balança a cabeça em desaprovação.

    G. é assim. Passa de um assunto a outro sem que você se dê conta. Finalmente começa a falar da família. O pai morreu, lhe restou a mãe, os irmãos são adultos e... "eu sei cantar Justin Bieber. Quer ver? Prefere Michael Jackson?"

    Sorriso fácil, o menino vai inventando seu próprio idioma para cantar. No refrão: "ohh baby, baby, baby ohh.

    "Em pouco tempo, forma-se uma roda de trabalhadores noturnos do shopping para vê-lo cantar.

    Flamenguista, adotou o Corinthians em São Paulo. "É o Flamengo daqui. E quer saber? Sou Timão! Sou Timão", bate no peito. Quase ao mesmo tempo, um morador bate a janela do segundo andar. É a senha para que ele perceba que está incomodando. Na outra calçada, um morador de rua levanta da calçada e resmunga qualquer coisa incompreensível.

    Mais do que depressa ele abaixa o tom de voz. A discrição, no entanto, não é seu forte e não dura muito. Ele volta a se empolgar com suas próprias histórias. "Já fui nessa sinagoga aqui da rua, mas não entendi nada. Eles rezam noutra língua." Como que para mostrar que não está brincando, saca do meio da confusão um quipá. "Olha só, já viu isso? Eles usam na cabeça."

    Também não demora muito e as novas batidas na janela do segundo andar alertam que daqui a pouco ele pode ter problemas. A essa altura, o menino se diverte. "O pessoal aqui gosta de mim", diz.

    Passa da 1h30 e o garoto não dá sinais de estar cansado. Com a mesma velocidade em que conta suas histórias, no entanto, dispara: "bom, vou dormir. Se quiser passar aqui amanhã, acordo às 15h".

    O menino coloca a cabeça para fora da barraca mais uma vez, espia o outro lado da rua, fecha o zíper da sua "casa" e se recolhe. Meio minuto depois, uma moradora salta de um carro, caminha até o portão do Santa Emília, olha para o "mundo" do menino e diz: "boa noite, durma bem"

    Lá de dentro da barraca ainda dá para ouvir. "Durma bem você também."

    *

    Para ajudar menores em situação de rua, os moradores de São Paulo podem acionar a Coordenadoria de Atendimento Permanente e de Emergência (CAPE), através do telefone 156 que é a Central de Atendimento e Informações da Prefeitura de São Paulo.

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