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    Restaurado, palacete dos anos 1910 vira 'casa dos artistas' da velha guarda

    LEANDRO MACHADO
    DE SÃO PAULO

    28/12/2014 02h00

    De passos lento, parecendo tatear por onde passa, o ator e diretor de teatro Sebastião Apolônio, 71, caminha pela primeira vez em uma casa que pode chamar de sua. "Agora, planejo viver até os 85", ironiza, olhando pela janela e se apoiando na bengala.

    Do outro lado do batente, uma barulhenta avenida São João, centro da capital paulista. "É muita buzina, mas a gente se acostuma", diz, enquanto arruma os livros de teatro acumulados em mais de 50 anos de carreira.

    Com mais de 200 peças no currículo –entre elas, o sucesso "Aí Vem o Dilúvio" (1980)–, Apolônio poderia dizer que sua casa, na verdade, é o teatro. "Mas ninguém vive em um teatro", brinca.

    Numa manhã da semana passada, ele foi o primeiro a se mudar para um dos 50 apartamentos do Palacete dos Artistas, conjunto habitacional da Prefeitura de São Paulo para artistas idosos.

    Danilo Verpa/Folhapress
    O cantor Roberto Luna, 85, que fez sucesso em 1950, em sua nova casa, no centro de SP
    O cantor Roberto Luna, 85, que fez sucesso em 1950, em sua nova casa, no centro de SP

    O prédio, de 1910, foi totalmente restaurado –um retrofit. Nele, funcionava o Hotel Cineasta, que hospedou, em tempos áureos, nomes de sucesso como Dercy Gonçalves e Oscarito.

    "O público acha que artista ganha muito dinheiro. Na verdade, a maioria não. O que eu ganhei deu para sobreviver. Comprar uma casa, já seria demais", diz Apolônio.

    A "casa do artistas" de São Paulo demorou mais de dez anos para ficar pronta. A ideia foi da bailarina Ray Maria Moura, 57, que, em viagem à Europa, conheceu conjuntos habitacionais para artistas com mais de 60 anos.

    Ela apresentou a ideia à então prefeita Marta Suplicy (PT). Aí, começou uma novela enrolada, quase sem final —um roteiro cheio de políticos e engavetamentos.

    Só em 2012 a obra começou, já no fim da gestão Gilberto Kassab (PSD). Foi entregue em dezembro deste ano, em uma cerimônia costurada por discursos emocionados.

    A prefeitura teve que apressar a inauguração, porque temia que movimentos de moradia invadissem o edifício —a região é cercada por prédios ocupados por sem-teto.

    "Acredito que ninguém invadiria, porque a luta deles é a mesma que a nossa", diz a atriz Eliná Coronado, 62, já no apartamento novo.

    SANTO FORTE

    Para a inauguração, o cantor Raimundo José, 69, voz ainda intacta, levou um cartaz com uma foto sua da época em que fazia bastante sucesso, nos anos 1970.

    Seu maior hit, "Santo Forte", foi gravada em 1977. "Vendeu muito em 1978...", conta, orgulhoso, sem saber ao certo quanto foi. No auge, ele dividiu o palco com os ícones Nelson Ned e Agnaldo Timóteo. Hoje, arruma dinheiro cantando músicas italianas em casamentos.

    Raimundo terá outro cantor como vizinho: Roberto Luna, 85, antigo crooner de boates cariocas e com mais de 60 LPs gravados. Luna atuou no clássico do cinema marginal "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla.

    "Tem artista que consegue ganhar dinheiro, ficar rico, morar em mansões. Mas eu fui uma pessoa muito dedicada ao amor...", diz, enigmático. Em seguida, emenda com uma gargalhada.

    ESTÚPIDO CUPIDO

    Morar no Palacete dos Artistas não será de graça. Para viver no prédio, os artistas vão pagar uma "locação social" –10% da renda familiar que declararem. Só pode morar no local quem ganha até três salários mínimos.

    Os apartamentos continuam sendo da prefeitura, mas as famílias têm a garantia de permanência por tempo indeterminado. A cada quatro anos, um novo contrato deverá ser assinado.

    Na prática, os imóveis só mudarão de mãos em caso de morte do morador original.

    Rosto conhecido por novelas como "Estúpido Cúpido" (Globo) e "Tocaia Grande" (Manchete), a atriz e comediante Vic Militello, 72, brinca com o futuro:

    "Só vou sair do meu apartamento quando eu morrer. E aí, se tivermos um prefeito do PT, serei incinerada; se for do PSDB, vou virar linguiça, e se for do PV, viro adubo."

    Colaborou ISADORA BRANDT

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