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    Em um dia na cracolândia, repórter vê assalto e recebe oferta para usar crack

    GUSTAVO FIORATTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    25/01/2015 02h00

    O confeiteiro Ricardo Aparecido Peres, 40, passeava com Ozzy Osbourne, seu pitbull, às 6h15 de sexta, dia 16. "Escolhi a raça porque aqui fraco não tem vez", disse.

    Com essa frase, abri a maratona de 24h vagando pelos três bairros paulistanos que cresceram vizinhos à estação da Luz, cartão-postal da cidade: Santa Ifigênia, Bom Retiro e Campos Elíseos.

    A jornada deu origem a esta reportagem. Sem preconceitos, mas sem ingenuidade: a 3ª DP, que atende a região, registrou nove homicídios dolosos no ano passado, além de 3.558 roubos. Para efeito de comparação, a DP de Pinheiros registrou um homicídio doloso em 2014 e índice de roubo 57% menor.

    Aluguei por R$ 60 um quarto no Tela Viv -pequeno hotel de paredes verdes e laranjas, cheio de baratas– e parti para campo.

    A cracolândia margeia hoje o terreno baldio onde até os anos 1980 funcionou a principal rodoviária de São Paulo. Desativado o serviço, o prédio foi ocupado por um shopping. Em 2010, acabou demolido pelo Estado, que pretendia erguer ali um teatro, vizinho à Pinacoteca do Estado, à Sala São Paulo e ao Museu da Língua Portuguesa. Gastou-se mais de R$ 100 milhões e nada saiu do chão.

    Às 7h, usuário e traficantes pipam, dormem, comem, brincam, leem revistas, procuram coisas pelo chão. Junto à massa humana, misturam-se fezes, lixo orgânico, móveis desmantelados, brinquedos, colchões. Nesse horário, trabalhadores deixam a estação de trem Júlio Prestes em direção ao Bom Retiro e são obrigados a atravessar a área ocupada pelo crack. Acordo silencioso, ninguém mexe com ninguém.

    Naquele dia, o serviço de limpeza municipal apareceu cedo para varrer as ruas. Assistentes sociais da prefeitura e do Estado iniciaram expediente logo em seguida. São oferecidos corte de cabelo, banho, ajuda psicológica e banheiros.

    A um quilômetro dali, a fila para ver Ron Mueck na Pinacoteca começou a crescer. Com o adensamento diurno também no parque e nas proximidades da Santa Ifigênia, a cracolândia permaneceu concentrada em um ponto distante, mas em estado latente.

    Às 18h, museus de portas fechadas, o comércio encerrou expediente, e em menos de uma hora houve esvaziamento da região. Com ruas desertas, a cracolândia expandiu-se. Em ruas escuras, mesmo com a presença da polícia e de poucos moradores, grupos isolados de usuários começaram a se formar.

    Jantei às 21h fora dali, na calçada da avenida Rio Branco, onde peruanos serviam frango com arroz, batata e cebola a R$ 9. O boliviano Isaac Clarete, 30, está há seis anos na cidade. Trabalhava em confecção das 8h às 22h, ganhava mal. Estudou para ser mecânico e hoje ganha mais de R$ 1.000, disse.

    Enquanto comia, a mineira Valdirene Reis, 31, andava solitária perguntando a usuários de crack onde ficava a cracolândia. "Não quero crack", ela disse. "Estou procurando meu irmão."

    Prosseguimos juntos. Valdirene morava em Alfenas, hospedara-se na Luz, e sua busca durava já quatro dias. Medo? Ela disse que se acostumara com a situação. "Meu irmão é um bundão, se eu grito, ele me obedece."
    Quando a cracolândia despontou no horizonte, Valdirene disse que preferia chegar sozinha. Fiquei alguns passos atrás, tentando observá-la. Ela atravessou a muvuca e, ali no centro da concentração, penetrou em uma espécie de favelinha construída de lona e madeira, um lugar preservado, onde apenas iniciados entram. Tomei coragem, fui atrás.

    Perdi Valdirene de vista e descobri que a favela era surpreendentemente organizada. Tratava-se de uma feira com várias tendas consecutivas uma ao lado da outra, vendedores sóbrios atrás de mesas, pratos cheios de pedras de crack a olho nu, muitas velas. Apesar da presença de policiais, a cracolândia funciona profissionalmente, como um mercado. Não é formada apenas por um bando de doentes viciados.

    Tentaram a todo custo me convencer a fumar, e foi difícil explicar ali minha abstinência, recusando muitas vezes o cachimbo alheio.

    Então as cenas foram se acumulando. Um grupo de evangélicos passou para pregar a palavra de Jesus. Vi pessoas de classe média, um casal de cinquentões bem vestidos, uma menina arrastando uma mala sem rodinhas, um sujeito que vendia sua blusa de moletom por R$ 2.

    Conheci uma criança, que tentou a todo custo me catequizar. Foram quase duas horas tentando afastá-la. Ao mesmo tempo que forjava aproximação enternecida, ele começou a se interessar pelo meu celular.
    Pediu para fazer uma ligação para a irmã. Não recusei, mas disse que eu próprio faria. Pedi o número. "Cinco, oito, quatro, zero", ele respondeu. "Não dá para fazer ligações com quatro números", eu disse, "você quer me roubar." Ele fugiu.

    Voltei para o hotel entre 2h e 3h da manhã, com medo de que aquela situação tivesse chamado atenção de bandidos. Abri a janela para ventilar o quarto e testemunhei um assalto. Um homem caminhava com uma mulher, dois sujeitos se aproximaram por trás, ele tentou correr. Derrubaram-no, o chutaram-no e levaram suas coisas. A mulher partiu com os bandidos.

    Eu quis fazer uma última ronda pelo bairro às 4h30, mas o porteiro do hotel disse, "agora está perigoso". Insisti, e então ele respondeu que, por segurança, não me permitiria entrar de volta antes das 6h. Decidi ficar no hotel.

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