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    Mulher que perdeu marido na Kiss se dividiu entre o luto e a maternidade

    FELIPE BÄCHTOLD
    DE PORTO ALEGRE

    27/01/2015 02h00

    Joana Carvalho Treulieb nasceu 47 dias depois da morte do pai, João Aloisio, no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS), em 2013. A tragédia, que deixou 242 mortos, completa dois anos nesta terça-feira (27).

    A mãe da menina, Patrícia Carvalho, 37, conta que se viu dividida entre o forte impacto da perda do marido, que era chefe do bar da casa noturna, e a expectativa da fase final de sua gravidez.

    Jean Pimentel/Agência RBS
    Patrícia Carvalho, 37, brinca com a filha Joana
    Patrícia Carvalho, 37, brinca com a filha Joana

    *

    Depoimento

    Quando aconteceu a tragédia, eu estava entre duas emoções: a perda do meu marido e o nascimento da minha filha. A gente não sabia o que iria acontecer. Foi um final de gravidez com os dias mais difíceis, da dor da perda.

    Então voltei toda a energia para o bebê. Era alguém que dependia de mim e que precisava da nossa força.

    Em um primeiro momento, o médico me disse que o choque [da morte] tinha sido grande e que, em razão disso, a bebê poderia nascer antes. Ele falou que eu teria que me manter calma. Esperei o parto para qualquer hora.

    Ficamos naquela expectativa de nascer saudável e bem. Ela nasceu antes do tempo, mas felizmente sem nada que pudesse comprometer o desenvolvimento ou a saúde. Desde então, todo o nosso foco foi o bebê.

    Eu e o João namoramos por dez anos. Casamos em 2012 e, em menos de um ano, veio a gravidez. Estávamos na expectativa do primeiro filho. E era uma euforia, pois também era o primeiro neto dos avós.

    Uns dias antes da tragédia, montamos carrinho e arrumamos berço. O quarto estava quase todo pronto, nos detalhes. A gente estava vivendo aquele momento junto.

    'MORA NO CÉU'

    Logo depois da tragédia, a família toda procurou ajuda psicológica. Foi o meu pior momento. A psicóloga disse que o melhor seria descrever tudo que eu estava passando em um diário, botar no papel.

    Desde então, continuo escrevendo, contando no papel, como se fosse para a minha filha, tudo o que aconteceu. Até para que as coisas não se percam ao longo dos anos.

    Tenho guardado para mostrar para ela quando estiver no momento.

    Uma preocupação que eu tenho é de que maneira explicar o que aconteceu com o pai dela. Ela já sabe que o pai dela é o João, conhece e identifica fotos. Quando ela questiona, a gente diz que ele mora no céu e é uma estrelinha.

    Ela não tem uma noção muito grande disso, mas sabe quem ele é.

    Quando ela começou a ir à escola, os coleguinhas falavam em pai e ela ficava meio perdida. Qualquer figura masculina ela chamava de pai. E não questionou mais.

    Tudo tem seu tempo. Todos nós estamos nos preparando para quando ela pedir mais informações.

    Fazemos um trabalho em equipe: são dez padrinhos e dez madrinhas, além de toda a família. Depois da tragédia, vários amigos meus e do João me ajudaram muito e ficaram mais próximos. E eu convidei todos para serem padrinhos da Joana também. Eles fazem visita com frequência, levam para brincar, se mantêm ativos, ajudam a educar.

    ESPERANÇA RENOVADA

    Os familiares se uniram cada vez mais. Tivemos a perda e o nascimento: eram dois grandes fatores para permanecermos juntos.

    Para a família do João, a minha filha é a presença dele. Ela é muito parecida com ele, lembra muito. Todas as pessoas que o conheceram falam isso. É uma menina saudável, superesperta, precoce.

    Cada dia tem uma novidade para mostrar, pequenas coisas a que, depois de passar por aquela tragédia, a gente dá um valor imenso.

    O nascimento nos renovou a esperança. E é assim até hoje. Não que tivesse suprido a falta do João, mas ela é um alicerce para nós. Não sei o que teria sido se eu não estivesse grávida naquela época.

    UM DIA APÓS O OUTRO

    Toda essa situação, de sonhos e planos que se perderam, me fez repensar em como ver o futuro. Eu e o João fazíamos planos a longo prazo, coisas que não se concretizaram depois do incêndio.

    Agora eu penso só no que vou fazer amanhã. A partir do amanhã, vejo o que farei depois. Não tenho mais planos a longo prazo: é um dia de cada vez. Foi uma das mudanças radicais que eu tive.

    Foram 242 pessoas que morreram e a cidade se mobilizou por aquilo, todo mundo foi solidário. Mas a vida segue, e aquela comoção foi só nos primeiros momentos.

    Eu já sabia que, naturalmente, iria restar uma dor que é só das famílias.

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