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    Perdemos o sentido de planejamento, diz historiador do Rio

    ALVARO COSTA E SILVA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO RIO

    01/03/2015 02h00

    Crítico ferrenho do projeto de reforma da zona portuária do Rio, o Porto Maravilha, dos VLTs (veículos leves sobre trilhos) na avenida Rio Branco, da expansão das linhas do metrô e da preparação para as Olimpíadas do ano que vem, Nireu Cavalcanti, 70, reúne os instrumentos do historiador e os procedimentos do urbanista e arquiteto para dar sua visão do Rio aos 450 anos: "Perdemos o sentido de planejamento".

    Em entrevista à Folha, o autor do livro já clássico "O Rio de Janeiro Setecentista" (Editora Zahar, 2003), que ganha nova edição no bojo das comemorações, vai na contramão da prefeitura e aponta a zona oeste como o melhor caminho para a cidade ter um crescimento equilibrado, desde que se resolva o problema do transporte de massa e habitação popular.

    Mauro Pimentel/Folhapress
    Historiador Nireu Cavalcanti
    Nireu Cavalcanti: "O centro do Rio hoje não tem um núcleo. São retalhos, são fragmentos que escaparam à destruição orquestrada pela especulação imobiliária com a conivência do poder público".

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    Folha - Como o senhor vê as mudanças pelas quais passa o Rio, sobretudo na região portuária?

    Nireu Cavalcanti Cada vez que acontece um fato inusitado no Rio -desde a chegada da Corte [1808] até as Olimpíadas-, ele é aproveitado por diversos níveis de poder para expressar seu regozijo. Nesses momentos são feitas obras que não têm nenhuma relação com o conjunto das necessidades da população. O governante aproveita para fazer o que tem na cabeça. Foi assim que se resolveu derrubar o morro do Castelo, em 1921. E é assim que está sendo realizada a obra na região portuária.

    A questão é que perdemos o sentido de planejamento. O último momento de algum planejamento foi nas últimas duas décadas do século 19. A cidade estava se espraiando, e foi solicitado a um grupo de três engenheiros, entre os quais o futuro prefeito Pereira Passos, o primeiro plano diretor do município do Rio, em 1874.

    Esta equipe fez uma proposta correta: alargar as ruas do velho Centro, preservando as edificações históricas, e propor um novo centro na região de Vila Isabel, Andaraí e Tijuca, em direção à zona norte. Se esse projeto fosse inteiramente aplicado, não teríamos o caos de hoje.

    Na época o projeto contemplou o porto, perfeitamente integrado à cidade, com três avenidas: Rodrigues Alves, Francisco Bicalho e Central. Uma porta de entrada que virou cartão postal. Diferentemente do que ocorreu em Barcelona, Lisboa ou Buenos Aires, com portos afastados e escondidos. São concepções urbanísticas diferentes.

    Como contrapartida do dinheiro investido no Porto Maravilha, a prefeitura quer preservar áreas históricas. Ainda é possível?

    O que estão fazendo no morro da Conceição e no Largo de São Francisco da Prainha? Nada. O que vai acontecer é óbvio: os proprietários vão vender os imóveis. Então a vida acabou. A história acabou. A região, mesmo que preserve o casario, vai se transformar em mais um centro de comércio. Depois arrumam algumas pessoas para cantar samba, e está tudo bem. Qual a relação do Porto Maravilha com a sua vizinhança e o restante da cidade? Tudo se resume ao seguinte argumento: construir torres de 50 andares. E pronto.

    A ampliação das linhas do metrô, BRTs, VLTs vão solucionar o problema de transporte?

    O país fez a opção de enfrentar a crise econômica vendendo carro. Em dez anos multiplicou-se a frota de veículos particulares. Em relação ao transporte público de massa não se fez nada. Não precisa ser um técnico para perceber que essa equação é impossível de resolver.

    Os VLTs da avenida Rio Branco são outro problema grave. Não se coloca veículo pesado em centro histórico. Nenhuma cidade do mundo faz ou fez isso.

    O metrô deveria seguir o projeto original antigo, ligando Barra da Tijuca à estação da Carioca, passando por Gávea, Jardim Botânico, Humaitá, Dona Marta, Laranjeiras, direto ao Centro. Na Estação de Laranjeiras, poderia seguir um ramal para Rio Comprido, Sambódromo, praça Cruz Vermelha. Era um conceito simples de levar o metrô aos maiores pontos de concentração, que foi abandonado.

    Que acha da "morte" do elevado da Perimetral?

    Sempre me opus à derrubada do elevado, mesmo achando que nunca deveria ter sido erguido. É um exemplo típico de falta de planejamento. Todas as obras atuais poderiam ter sido feitas com a Perimetral de pé, para evitar o impacto e o caos das ações. Depois, se fosse o caso, ela seria derrubada.

    O crescimento da cidade em direção à zona oeste ainda é viável ou está esgotado?

    A expansão à zona oeste é ainda perfeitamente viável. Uma excelente saída, desde que se tenham novas linhas de metrô e trens, e não BRTs ou VLTs, que têm a função de ligação entre as grandes redes e não a de fazer transporte de massa.

    Confunde-se a zona oeste apenas com a Barra da Tijuca, e aí se aproveitam para dizer que estão fazendo obras na região. A rigor, a Barra é região da orla, que acompanha a zona sul. Representa uma visão discriminatória e elitista, um projeto dos anos 1970 que não previu transporte coletivo nem esgoto, muito menos habitação popular.

    Na época os empresários disseram que só precisariam de acesso e uma grande avenida, e ali nasceria uma cidade ecológica. No entanto, surgiram favelas e as lagoas estão morrendo. A Barra é exemplar da visão da cidade como mercadoria para A ou B ganhar dinheiro.

    O Rio continua uma cidade partida?

    Continua partida entre a favela e o asfalto. E pior ainda: bipartida, porque mesmo no asfalto existem áreas mais ou menos assistidas e outras abandonadas.

    Que impacto pode-se esperar da Olimpíada em 2016?

    Peguemos a Baía de Guanabara. Já se admite que a poluição vai continuar. Mesmo assim, alguma coisa deverá ser feita na parte que banha o Rio mais rico e visível. Mas a baía é um conjunto, que inclui Ilha do Governador, Niterói, São Gonçalo, Duque de Caxias, Nilópolis, Belford Roxo, Magé, entre outros municípios. Estes não terão melhoria alguma, pode apostar.

    Ainda é possível identificar a cidade do passado?

    O centro do Rio hoje não tem um núcleo. São retalhos, são fragmentos que escaparam à destruição orquestrada pela especulação imobiliária com a conivência do poder público. O largo da Carioca, onde esteve o primeiro chafariz, em 1723, e ainda está o convento de Santo Antônio, é aquilo que se vê: para poder admirá-lo, é preciso esquecer o entorno. Resta-nos entrar no claustro e rezar, sonhando com o passado.

    Qual o melhor presente que o Rio pode receber?

    Hoje, aos 450 anos, poderíamos estar subindo o morro do Castelo para admirar a obra de Mem de Sá. Foi demolido por puro preconceito, porque naquele momento só morava pobre lá. E houve quem aplaudisse a iniciativa, por ter sido retirado um "quisto" da cidade. A ponto de o prefeito Carlos Sampaio ter dito que o morro do Castelo era um dente cariado na boca de uma moça bonita. Só dois loucos foram para a imprensa e se colocaram contra a derrubada: Lima Barreto e Monteiro Lobato.
    Como não posso pedir de presente a volta do morro do Castelo, gostaria de ver uma administração pública, formada por técnicos de qualidade, e que tenha continuidade. Que não destrua o que o antecessor porventura tiver feito de bom.

    O senhor é especialista no período do Rio colonial. O que nos restou daquela época em termos de tradição cultural?

    Nossa capacidade da festa. Desde sempre a cidade soube se transformar, em poucos dias, para saudar a chegada de uma personalidade importante ou para lembrar uma data relevante. Esse espírito coletivo de organização e hospitalidade ficou. O Carnaval é um exemplo perfeito. Mais recentemente, a vinda do papa Francisco é outro exemplo.

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