• Cotidiano

    Tuesday, 30-Apr-2024 18:28:06 -03
    Crise da água

    Em avião de guerra, servidor diz ter feito chover durante seca há 50 anos

    FERNANDA MENA
    DE SÃO PAULO

    08/03/2015 02h00

    Em 1964, o jovem Jorge Luiz Grappeggia entrou em um avião com a missão de fazer chover em São Paulo.

    O encarregado de serviços técnicos do Departamento de Águas e Energia Elétrica, hoje o servidor mais antigo do Estado, subiu 5 km de altura em uma aeronave de guerra e despejou gelo seco em uma nuvem.

    Naquele dia, um temporal alagou a região do ABC. A eficácia do método hoje é questionada pela Sabesp.

    Marlene Bergamo/Folhapress
    Jorge Luiz Grapeggia, funcionário público mais antigo de SP
    Jorge Luiz Grapeggia, funcionário público mais antigo de SP

    *

    Depoimento...

    Arrisquei a vida para fazer chover em São Paulo.

    Eu tinha 28 anos e trabalhava no Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica) do governo do Estado [onde trabalha até hoje, sendo o servidor mais antigo de SP].

    Fazia a medição dos rios na região do Médio Tietê. Certo dia, estava num barco com dois colegas quando a embarcação virou. Um deles não sabia nadar, e eu consegui salvá-lo. Acho que isso fez com que eu ficasse com fama de valente lá no departamento...

    Fato é que, em seguida, fui incumbido de participar de uma experiência de indução de chuvas: subir num avião e despejar gelo seco na nuvem mais alta e mais densa que houvesse para tentar provocar chuvas que atingissem a represa Billings.

    Nunca gostei de viajar de avião. Sempre tomo remédios por causa de enjoos.

    Mas São Paulo vivia uma estiagem muito grave. A represa estava quase seca, e o fornecimento de energia elétrica já sofria racionamento.

    A experiência com gelo seco foi feita a pedido do então governador, Adhemar de Barros. Ele queria que algum funcionário do Daee executasse o método do professor Janot Pacheco, engenheiro mineiro que desenvolvera uma forma de semeadura de nuvens.

    Editoria de arte/Folhapress

    Bastaria despejar, a partir de um avião, gelo seco (dióxido de carbono solidificado) dentro de uma nuvem, provocando chuvas.

    Janot criou o método, mas quem quase morreu fui eu!

    A Kibon doou o gelo seco e a FAB (Força Aérea Brasileira) disponibilizou um B-25. O avião, usado na Segunda Guerra Mundial, já era quase uma sucata voadora.

    No dia 12 de fevereiro de 1964 o piloto da FAB disse que tinha encontrado as condições perfeitas para fazermos chover na represa Billings.

    Era uma nuvem do tipo "cumulus nimbus", muito densa, considerada o terror da aviação [dentro dela, ventos correm de baixo para cima a uma velocidade de até 100 km/h]. Ela estava entre Cumbica e a Lapa, a 5.000 metros de altura, e ventos eram favoráveis.

    Perguntei ao piloto se havia paraquedas para o caso de emergência. Ele riu: disse que o avião era tão pesado que se esborracharia contra o solo em poucos segundos caso os motores falhassem.

    Mesmo sabendo dos riscos, colocamos um tonel com 200 quilos de gelo seco dentro do avião e subimos.

    A pessoa que se mete nisso tem que correr algum risco, ora bolas! É como quem pratica esporte radical: sabe do perigo e vai em frente.

    Decolamos e, não demorou muito, já estávamos entrando na nuvem. De repente, fez-se uma bruta escuridão.

    Não se enxergava nada. Era raio para tudo o que é lado: clarões pertinho do avião.

    Senti um dos motores parar. Foi uma turbulência danada. Mas não houve tempo para desespero, só para pensar: desta vez, não escapo.

    Nessa confusão, jogamos todo o gelo seco dentro da nuvem de uma vez. Queríamos fugir daquele inferno.

    De imediato, deu uma chuva violenta. Fiquei surpreso: o processo foi instantâneo. Quando o piloto percebeu o temporal, tratou de cair fora.

    Saímos daquela escuridão, e achei que já estava tudo bem. Mas aí deu o perereco.

    Na hora de pousar em Cumbica, as chuvas eram tão densas que não se enxergava nada. E o avião perdeu o freio.

    O piloto jogou o trem de pouso contra marcos de iluminação: os pneus estouraram, e o avião deitou o nariz no asfalto, soltando fogo para todo lado, até parar, a 20 metros do final da pista.

    O camarada deveria ser o melhor piloto da FAB.

    Choveu tanto que deu enchente em São Paulo. Transbordou o rio Tamanduateí. Alagou a região do ABC. No dia seguinte, as chuvas estavam em todos os jornais.

    Arrisquei minha vida para beneficiar milhões de pessoas, e aquele voo ficou marcado na minha alma.

    Esperava pelo menos um muito obrigado. O próprio governador deveria ter nos agradecido. Mas não o fez. Achei muita falta de educação.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024