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    Crítica: Documentário vale a pena por imagens belas de seca e abundância

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    22/03/2015 02h00

    Tudo ficou seco e os peixes morreram. Eles disseram que a água voltaria, que iriam liberá-la. Mas era mentira. Eles não voltaram e não há água.

    É uma enrugada mulher que faz o desabafo, em espanhol, lembrando dos tempos antigos em que a água era farta. Ela fala do vale do rio Colorado, que atravessa o sudoeste dos EUA e entra exaurido no México, depois de irrigar plantações e condomínios.

    A cena está no início de "Marcas dá Água", documentário canadense de Jennifer Baichwal e Edward Burtynsky. Antes dela, surge o jorro abundante de uma represa na China. Depois, aparecem os imensos cultivos texanos, desenhados em círculos pela lógica dos mastodônticos irrigadores.

    As imagens são estonteantes e desenvolvem uma dança lenta. Não se fica sabendo quem são os "eles" do lamento da velha mulher. Nem se há relação direta entre a seca mexicana e o agronegócio norte-americano de algodão e girassóis.

    Sem se preocupar em apontar responsáveis específicos, o filme segue apostando em ângulos de tirar o fôlego: mergulha em grandes barragens em construção, montanhas nevadas, rios refrescantes.

    Contrasta os amplos planos abertos com fragmentos da labuta cotidiana de trabalhadores que lidam com a água pelo mundo.

    A câmera foca em homens e mulheres de Bangladesh executando duras tarefas em uma fábrica de couro e calçados de exportação para Europa e EUA. Sujos, exaustos e sem proteção, manipulam produtos químicos, poluem a água.

    Em outro momento, chineses trabalham em imensa fazenda de frutos do mar. Numa rotina árdua e minuciosa, eles se equilibram em estreitas passarelas, comem na correria e discutem pagamento de salários.

    Também na China, o documentário descobre um inusitado "guarda da água". Para evitar desvios em plantações de arroz, ele percorre trilhas em infindáveis curvas de nível nas bordas de montes. Já nos EUA, os diretores (autores de "Manufactured Landscapes", de 2007) entram em fonte de água dançante de cassino em Las Vegas, onde operários cuidam para que os mecanismos funcionem sem problemas durante os shows.

    Numa das sequências mais interessantes da fita, milhões de indianos tomam banho no Ganges, seguindo rituais de purificação. O corte vai para outra multidão: a que acompanha um campeonato de surfe nos EUA. Todos em torno da água.

    Fazendo contrapontos como esse, o documentário deixa nas entrelinhas as contradições no uso da água pelo planeta. As causas da abundância hídrica e da seca não são discutidas de forma clara. Fica no ar um genérico "eles", a "humanidade" que maltrata seus recursos naturais, o "aquecimento global".

    As questões permanecem muito abertas, faltam elementos didáticos básicos, e o filme parece não ter rumo. Cresce quando acompanha de perto a rotina de trabalhadores. Mas se contenta em se deixar levar pela enxurrada lenta de imagens belíssimas. Vale por elas.

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