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    Opinião: Brasil não tem uma nova classe média, mas pobres com dinheiro

    ANTONIO PRATA
    ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

    20/06/2015 20h47

    Nos últimos meses, os brasileiros que, como eu, se emocionaram com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, em 2003, andam bem desanimados.

    Acreditamos que o Partido dos Trabalhadores nos transformaria, enfim, num país justo. No entanto, escândalos de corrupção, recessão econômica e alianças oportunistas com antigos rivais trocaram o otimismo por um velho conhecido nosso, um derrotismo que permanecia dormente desde o início da década de 1990 e que agora bate novamente à porta, sussurrando que, entre nós, nada nunca vai dar certo.

    Na última década, pela primeira vez na minha geração, foi empolgante ser brasileiro. Apesar da crise mundial, o país crescia e distribuía renda.

    "Esse é o cara!", dizia Obama, dando tapinhas no ombro de Lula. Sediaríamos a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e a Olimpíada, em 2016. A revista inglesa "The Economist" estampava na capa o Cristo Redentor, principal símbolo nacional, alçando voo como um foguete. Parecia que havíamos superado a nossa velha sina: a de ser um país rico habitado por gente pobre. Parecia que a profecia do escritor austríaco Stefan Zweig, de que o Brasil era "o país do futuro" tinha se cumprido: o futuro, afinal, chegara.

    Eu nasci em 1977, durante a ditadura militar. Uma das minhas lembranças mais antigas é de um comício em 1984, onde 400 mil pessoas exigiam eleições diretas para presidente. À certa altura, meu pai me colocou sentado em seu ombro para que eu pudesse enxergar, no palco, por cima da multidão, entre políticos e personalidades, meu herói da infância: Sócrates, craque do Corinthians e da seleção brasileira.

    Perto dele estava um gordinho barbudo, de orelha de abano, para o qual não dei a menor bola: Lula. Na adolescência, ele iria frequentar, também, meu Pantheon pessoal.

    O PT surgira em 1980, numa união entre trabalhadores, intelectuais e artistas. Lula era a principal figura do partido: migrante, vindo de uma das regiões mais pobres do país, ex-metalúrgico e líder sindical, havia liderado greves importantes, acelerando a queda dos militares –um ano depois daquela passeata.

    A ditadura só aprofundou a nossa histórica desigualdade.

    Durante a minha infância, indo e vindo do colégio, de ônibus, o apartheid social ficava claro: eu e meus colegas da escola particular, todos brancos, de aparelho nos dentes, ouvindo walkmans, calçávamos Nikes ou All-Stars, enquanto a maioria dos passageiros, negros ou pardos, dentes faltando, calçava as baratíssimas sandálias Havaianas e carregava seus pertences em sacolinhas plásticas, de supermercado.

    Por aqueles anos, nas eleições municipais e estaduais (permitidas, no fim da ditadura), eu usava camisetas ou bottons do PT com a mesma convicção com que vestia a camisa do Corinthians em dias de jogo. Infelizmente, o discurso radical daquele barbudo, nos palanques, não era tão eficiente quanto os toques de calcanhar de Sócrates, nos gramados, e o PT vencia bem menos eleições do que o Corinthians ganhava jogos.

    Só em 2002, concorrendo ao seu quarto pleito consecutivo, com um discurso mais brando, Lula seria eleito presidente.

    Em certa medida, o PT, há 13 anos no poder, confirmou as nossas expectativas. Lula –e, depois dele, Dilma– aplicou programas sociais e promoveu aumentos no salário mínimo que içaram mais de 40 milhões de pessoas da pobreza para a classe média.

    No país em que eu nasci, em algumas regiões, passava-se fome. Hoje a obesidade é um problema geral. Nos ônibus, as pessoas teclam em seus smartphones, com dentes na boca e Mizunos nos pés –aqui em São Paulo, se você vir alguém de Havaianas, pode apostar que não é pobre, é gringo.

    O problema é que a inclusão foi parcial, pelo consumo: a educação pública continua péssima, a saúde, idem. Muitas casas têm TV de LED, mas não saneamento básico.

    Há quem diga que esses 40 milhões não são uma nova classe média, portanto, mas pobres com dinheiro, pois classe média significa mais do que poder de compra, significa ter acesso ao repertório comum da civilização: saber, por exemplo, que Picasso foi um pintor catalão, autor de "Guernica", que Freud é o cara do charuto, que inventou a psicanálise, que "Garota de Ipanema" é um marco da Bossa Nova, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

    Daí o medo diante da crise atual: será que as conquistas recentes vão sumir pelo ralo? Que Mizunos e smartphones irão embora, dando lugar, novamente, às Havaianas e sacolinhas?

    Não sou economista nem adivinho, mas pelo que leio e ouço por aí, acredito que a recessão e os abalos políticos vão ser superados em breve. Um novo ministro da Fazenda está pondo ordem na economia –segundo ele, voltaremos a crescer em 2016– e um Ministério Público independente vem investigando os casos de corrupção, já tendo mandado vários políticos e empresários para a cadeia.

    Pelas ruas, manifestantes gritam "Fora PT!", como se o Partido dos Trabalhadores fosse o responsável por todos os nossos males. Não é. O PT foi o partido que mais fez para diminuir a desigualdade brasileira –e, ainda assim, fez pouquíssimo.

    Talvez tão importante quanto sair da crise atual seja descobrir novos caminhos, para além do PT, que nos levem a um país verdadeiramente justo. Um país com uma classe média que, mais do que poder comprar tênis importados e celulares, poderá se emocionar diante de um quadro de Picasso e se distrair, no ônibus, assoviando "Garota de Ipanema" ou qualquer outra melodia dos saudosos Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

    Esse Brasil, infelizmente, ainda se conjuga no futuro.

    Antonio Prata é escritor e colunista da Folha. Envie comentários para intelligence@nytimes.com.

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