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    Caso de ex-PM preso faz Justiça discutir se ler também é estudar

    ESTÊVÃO BERTONI
    DE SÃO PAULO

    23/08/2015 02h00

    Jefferson teve 30 dias para ler o best-seller "A Cabana", de William P. Young, e mais dez para escrever uma resenha sobre a obra. Ao fazer isso preso, Jefferson estudou?

    A questão está hoje no centro de uma cizânia entre juízes, promotores e defensores públicos. Na falta de consenso sobre se ler é estudar, o que permite remição ao preso, a discussão chegou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça).

    Em junho, o ministro Sebastião Reis Jr. julgou que Jefferson dos Santos, ex-PM condenado a 12 anos de prisão por extorsão, estudou, sim, ao ler, e poderá subtrair quatro dias da pena que cumpre no presídio Romão Gomes (SP).

    A Defensoria fez ao todo 15 pedidos, após o Ministério Público contestar a legalidade da medida. Onze aguardam julgamento no STJ. Santos e mais três presos obtiveram decisões favoráveis.

    A discussão só acontece porque a leitura não está claramente expressa na Lei de Execução Penal, que determina a remição pelo estudo (a cada 12 horas de frequência escolar, um dia é extinto).

    Sobre o tema, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) recomendou em 2013 que a leitura de obras "literárias, clássicas, científicas e filosóficas" fosse incentivada nas prisões.

    O preso pode ter até 48 dias de perdão num ano caso faça uma resenha por mês. O juiz adota a prática se quiser.

    Nos quatro presídios federais do país, o projeto existe desde 2009. Houve adesão de 3.067 presos: das 2.493 resenhas, 2.197 foram aprovadas.

    Há projetos parecidos em 16 Estados, por decisão de juízes favoráveis à ideia. No Paraná, a medida –aplicada em todas as prisões– é lei desde 2012. Em três anos, 19.069 resenhas já foram aprovadas. Há preso que já leu 30 obras.

    Em SP, com a maior população carcerária do país (cerca de 200 mil pessoas), só 33 presos se beneficiaram da leitura, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária.

    Em Minas, três prisões adotaram o programa neste ano. Em Governador Valadares, a academia de letras local toca o projeto a pedido de um juiz.

    No Rio, Ministério Público e Justiça se opuseram ao plano. "O problema não é o pleito, mas como controlo o que foi lido", diz Eduardo Oberg, juiz titular da Vara de Execuções Penais do TJ do Rio.

    A promotora Maria da Glória Figueiredo, coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Execução Penal no Rio, diz que a leitura não é o processo educacional em si e que a ideia desestimula a criação de escolas nas prisões. "Presos entram e saem analfabetos. Isso não pode."

    O LEITOR MARCOLA

    Ao questionar a remição de Jefferson, em SP, o promotor Adalberto Denser de Sá Jr. cita nos autos Marcola, chefe do PCC, que tem fama de ler muito. "O maior criminoso de SP leu mais de 3.000 livros e não se ressocializou", afirma.

    Ele alega que resenhas podem ser copiadas da internet.

    Procurado, o Ministério Público disse que o promotor não iria se manifestar.

    Para Camila Tourinho, defensora que cuidou do caso de Jefferson, é desnecessária a previsão na lei. "Leitura é estudo. É até ridículo falar."

    Jayme Santos Jr., juiz assessor da Corregedoria Geral de Justiça de SP, diz que a leitura "tem grande capacidade de formação e transformação". O Estado, afirma, deve implantar o projeto na maior parte dos presídios até 2016.

    CLUBES DE LEITURA

    Na penitenciária feminina de Santana, na zona norte de São Paulo, há presas com nível avançado de leitura.

    "Algumas estão lendo autores como Raduan Nassar e Jack London", conta Janine Durand, coordenadora do núcleo de incentivo à leitura da Companhia das Letras.

    Foi ali que, em 2011, em parceria com a Funap (fundação de amparo ao preso, ligada à Secretaria de Administração Penitenciária de SP), a editora criou seu primeiro clube de leitura numa prisão.

    Em abril deste ano, a iniciativa se expandiu para oito cadeias. Foi criada uma biblioteca circulante com oito títulos, entre os quais "Cada Homem é Uma Raça", de Mia Couto, "Dois Irmãos", de Milton Hatoum, e "Persépolis", de Marjane Satrapi.

    Grupos de 20 presos têm 30 dias para a leitura. Ao final, as obras são discutidas sob supervisão de um monitor da Funap treinado pela editora, e resenhas a respeito são elaboradas pelos detentos.

    Sirlene Domingues, 39, que cumpriu pena de 2009 a 2013 por tráfico de drogas, defende o estudo e a leitura como melhor estratégia para a ressocialização dos presos.

    "A cadeia em si não muda nada para o preso. Só causa revolta", diz.

    Ela participou do clube organizado na penitenciária feminina em Santana.

    Sirlene prestou Enem na prisão, conseguiu uma bolsa do Prouni e hoje está no terceiro ano do curso de farmácia. Ela não foi beneficiada pela remição pela leitura porque a medida não era aplicada na ocasião.

    COERÊNCIA

    Após a recomendação de 2013 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), incentivando a remição por meio da leitura, a Companhia das Letras incluiu as resenhas como atividades dos clubes.

    Hoje, antes de serem enviadas à Justiça para os pedidos de remição, elas são avaliadas por funcionários voluntários da editora, que fazem um parecer sobre os textos.

    "A correção não passa pela questão ortográfica. É feita em cima da coerência e citação do livro", diz Janine.

    Eduardo Oberg, juiz titular da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Rio, afirma que projetos assim beneficiam poucos presos, já que a grande maioria tem o fundamental incompleto. "Não podemos tratar cada um de um jeito."

    Para Janine, o livro "é um direito humano básico que foi negado a uma determinada camada da população". "A leitura é um processo de formação. Não consigo entender como alguém é contra", diz.

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    LIVROS QUE CONTAM PARA REMIÇÃO DA PENA

    Presídios de MG

    > "Ágape", de Padre Marcelo Rossi
    > "Desbravadores e Pioneiros do Porto de Dom Manuel", de Maria Cinira dos Santos Netto

    Presídios do PI

    > "A Moreninha" de Joaquim Manuel Macedo
    > "Vencendo a Depressão", de Silas Malafaia
    > "Divina Comédia", de Dante Allighieri
    > "Bananas Podres", de Ferreira Gullar
    > "Oliver Twist", de Charles Dickens
    > "O Cristo em Nós", de João Nunes Maia
    > "Discurso Sobre as Origens", de Rosseau
    > "O Evangelho Segundo o Espiritismo", de Allan Kardec
    > "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson
    > "Robin Hood", de Isabel Vieira
    > "Os Lusíadas", de Luís de Camões

    Presídios de SP

    > "A Arte de Ouvir o Coração", de Jan-Philipp Sendker
    > "A Sociedade da Neve", de Pablo Vierci
    > "Persépolis", de Marjane Satrapi
    > "Capitães de Areia", de Jorge Amado
    > "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley
    > "O Nome da Rosa", de Umberto Eco
    > "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes
    > "O Processo", de Franz Kafka
    > "O Caçador de Pipas", de Khaled Hosseini
    > "Abusado", de Caco Barcellos
    > "O Diário de Anne Frank", de Anne Frank
    > "Estrela Amarela", de Jennifer Roy

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