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    Crise da água

    Faltou planejamento na crise da água em SP, diz chefe de agência federal

    EDUARDO GERAQUE
    ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

    07/09/2015 02h00

    O presidente da ANA (Agência Nacional de Águas), Vicente Andreu Guillo, 58, estatístico de formação e com uma longa carreira ligada à gestão dos recursos hídricos, diz que o país tem muito o que a aprender com a atual crise da água.

    A principal lição é que a oferta no Brasil é frágil diante de fenômenos climáticos extremos, o que exige da população –assim como da indústria e da agricultura– uma mudança cultural para diminuir o consumo.
    Filiado ao PT desde 1982, Andreu critica a politização da crise em época de campanha eleitoral, no ano passado. As decisões, diz, deveriam ter sido apenas técnicas.

    Cantareira

    A tensão entre o governo Geraldo Alckmin (PSDB) e a ANA, no ano passado, gerou críticas dos tucanos à agência federal. "Infelizmente, os dados mostram que eu sempre estive certo [sobre a gravidade da crise em SP]."

    Sobre o fato de ele ter sido considerado muito alarmista, o dirigente culpa a imprensa. "Muitas vezes, pinçaram só frases pitorescas minhas, dentro de um discurso de duas horas", diz.

    Leia a seguir trechos da entrevista.

    *

    Folha - Quais as lições que essa crise está dando ao país?
    Vicente Andreu Guillo - Uma delas é a percepção da população de que a oferta de água no Brasil é frágil frente aos eventos climáticos extremos. É uma mudança cultural muito significativa. Nós ainda temos consumos muito elevados se comparados com regiões de alta renda do planeta. Não estou me referindo apenas à questão individual, mas a da agricultura e a da própria indústria.

    No âmbito do planejamento dos recursos hídricos, quais leis precisam mudar?
    O duplo domínio da titularidade da água no Brasil [existem sistemas de abastecimento com rios regulados tanto pelo Estados quanto pela União] tem um justo propósito de promover a descentralização política para que as ações ocorram. Mas, em situações de crise, nós precisamos ter uma espaço de deliberação, de tomada de decisão, para resolver um impasse. Não dá para imaginar que numa ocorrência de conflito você tenha como primeira possibilidade recorrer à Justiça. A questão da titularidade também prejudica um planejamento integrado de um sistema. Considero um atraso que o planejamento do sistema Cantareira seja feito de forma fragmentada em relação aos outros sistemas de água existentes. A visão sobre os usos múltiplos da água também está distorcida. A lei em relação aos usos múltiplos é muito genérica. Ela diz que numa crise você precisa priorizar consumo humano e dos animais. Dito assim ninguém discorda. Mas consumo humano não é consumo urbano. Tem muita gente de alta renda que continua enchendo a piscina, lavando o carro.

    Nível Cantareira

    Quais regras precisam mudar para que o planejamento do Cantareira seja integrado, como você defende?
    Está evidente que essa outorga fracionada não favorece a integração dos usos. No caso específico de São Paulo, a dupla titularidade, em momentos de crise como o atual, não ajuda a distribuir benefícios e impactos de forma igual. Num caso de um conflito, na minha opinião, quem tem que decidir é a ANA. Em 2014, nós não tomamos nenhuma decisão. Fora a tensão para diminuir o consumo de água, nós acompanhamos as decisões da Sabesp [empresa estadual paulista]. Os dados corroboram o que estou dizendo: que, se no início de 2014 tivessem sido tomadas as medidas de restrição que só aconteceram em 2015, nós estaríamos com o abastecimento garantido para o próximo período chuvoso, até 2016.

    Na sua avaliação, por que elas não foram tomadas?
    Porque não teve uma previsão e um planejamento para uma crise como essa. Não estou discutindo qual foi a probabilidade de ocorrência de uma situação assim. Mas é evidente que deveria ter havido um plano de contingência estruturado para funcionar na maior região metropolitana do país, e não tinha. O sistema acabou sendo operado de acordo com as condições que a operadora de saneamento impunha como sendo limitantes. A Sabesp, em fevereiro de 2014, dizia que qualquer gota menos de 29 m³/s [em relação ao volume que ela poderia retirar do Cantareira] levaria a um colapso. Agora em setembro, está entrando uma média de 13 m³/s [no sistema da Sabesp]. Se aquela água pudesse ter sido reservada, hoje a situação seria mais muito mais favorável.

    Não é chocante não existir um plano de contingência? A ANA não tem que cobrar isso de São Paulo e dos demais Estados da Federação?
    Plano de contingência é uma generalidade que permite que cada um dê ao conceito a definição que quiser. O nome de plano de contingência serviu inclusive para um estudo patético que a Sabesp apresentou no meio da crise. Ele não tinha o menor sentido técnico. Aquilo era uma negação de técnica, e foi feito. Apresentado apenas para ganhar um tempo e dar uma justificativa de que aquilo era um plano. Não era nada. Nunca tivemos um plano de contingência da Sabesp ao longo desse ano todo. Nessa crise havia visões distintas entre ANA e Sabesp. As duas corretas. Mas qual é o problema? A Sabesp, pelos impactos econômicos, políticos e sociais que poderiam ter suas decisões, acabava tendo, no âmbito do governo de São Paulo, a posição preponderante. Não era a posição do órgão regulador. Era da Sabesp. E nós vivenciamos esse conflito.

    A Sabesp atropelou o Daee, órgão regulador do Estado de São Paulo, nessa crise?
    Nas discussões internas, o tempo todo. O Daee tem técnicos muito competentes. Mas o nível de autonomia do órgão regulador de São Paulo, comparado com o da ANA, é muito menor. Hoje, a agência tem total autonomia em relação às decisões que vai tomar no caso da gestão de recursos hídricos. Em São Paulo, vários exemplos demonstram que isso fica subordinado a uma análise também dos impactos políticos que uma medida pode causar. O GTAC (Grupo Técnico de Assessoramento à Gestão do Sistema Cantareira) acabou por causa disso. Várias vezes a reunião tinha que ser interrompida porque precisavam fazer uma outra reunião no Palácio [dos Bandeirantes] para avaliar as consequências políticas de medidas que precisariam ser tomadas tecnicamente.

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