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    Juízes gaúchos deixam formalidade e recitam sentenças em forma de poesia

    PAULA SPERB
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PORTO ALEGRE

    19/09/2015 02h00

    Editoria de arte/Folhapress

    A formalidade de uma audiência no fórum, com linguajar jurídico e código rígido de vestuário, é substituída pela simplicidade campeira dentro de um Centro de Tradições Gaúchas (CTG) na cidade de Capão do Leão (a 226 km de Porto Alegre).

    Na última quarta (16), advogadas e promotora colocaram seus vestidos de "prenda" (apelido dado às mulheres gaúchas), e o juiz estava "pilchado" (com bombacha e lenço vermelho no pescoço).

    Mas isso não é tudo. A manifestação das procuradoras, o parecer do Ministério Público e a sentença do juiz foram recitadas em forma de poesia gauchesca –e assim serão anexadas ao processo e publicadas no "Diário de Justiça".

    "Saudamos a gauchada / Bem como vossas excelências / Campeando uma solução justa / Para os problemas desta querência", declamaram a procuradora geral do município, Ana Cristina dos Santos Porto, 41, e a advogada do município, Luciana Mainardi Doares Reinhardt, 31, no início da audiência.

    Os versos seguiam com o pedido para que a finalidade de um terreno doado à prefeitura em 1990 fosse alterada para regularizar 74 moradias populares construídas no local, em 2009.

    O parecer da promotora Rosely de Azevedo Lopes foi favorável: "Todos têm direito à moradia / Que seja digna é fundamental / Está lá no texto constitucional".

    Divulgação/Assessoria de Comunicação da Direção do Foro de Pelotas
    Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS
    Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS

    O juiz, da comarca de Pelotas, acatou o pedido. "O município cumpriu a sua parte / Conforme a documentação retrata / É preciso não ser burocrata / E deixar que o interesse coletivo permaneça / A fim de que Capão do Leão cresça", recitou Marcelo Malizia Cabral, 43.

    "Eu não sou poeta. Redijo a sentença em termos jurídicos e a cada ano peço a um poeta que transforme em versos. Alguns juízes com talento escrevem de próprio punho", brinca Cabral, que realiza audiências crioulas (típicas do RS) há seis anos.

    O autor dos versos é seu assessor, Henrique Alam De Mello De Souza e Silva, 30. Ele conta que sempre leu o escritor João Simões Lopes Neto (1865-1916), que retratou a cultura gaúcha na obra "Lendas do Sul", e o poeta conterrâneo Jayme Caetano Braun (1924-1999).

    "A dificuldade foi transformar um fato real em poesia. Minha maior preocupação era fazer entender a sentença respeitando a forma da poesia gaúcha", explica o assessor. Silva diz que a forma e o ritmo dos versos é chamada de "payada" e ficou conhecida com o poema "Martín Fierro", do argentino José Hernandes (1834-1886).

    As advogadas da prefeitura escreveram os versos sozinhas, em quatro reuniões fora do expediente, além de duas sessões de ensaio. "Aceitamos o desafio e participamos", diz Ana Cristina.

    Divulgação/Assessoria de Comunicação da Direção do Foro de Pelotas
    Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS
    Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS

    TRADIÇÃO

    A tradição da audiência crioula surgiu há 12 anos para celebrar a Semana Farroupilha, que lembra a Guerra dos Farrapos (1835-1845), na qual republicanos lutaram contra o império.
    Cerca de dez juízes gaúchos realizam a "audiência crioula" em diferentes cidades do Estado. Neste ano, Capão do Leão, Estrela e Camaquã tiveram as suas.

    Segundo o juiz Cabral, além de homenagear a tradição, o objetivo é aproximar o Judiciário da comunidade. "Em regra as audiências são públicas. Mesmo com portas abertas, o público raramente comparece", afirma.

    O CTG Tropeiros do Sul estava lotado no evento –comunidade e autoridades, todos vestidos a caráter, acompanharam o processo.

    Na mesa do juiz e das partes não faltou chimarrão, bebido mesmo durante a audiência. Depois do encerramento, todos confraternizaram com churrasco.

    Divulgação/Assessoria de Comunicação da Direção do Foro de Pelotas
    Fórum de Pelotas montou "galpão crioulo" durante comemorações da Semana Farroupilha com eventos e jantares típicos
    Fórum de Pelotas montou "galpão crioulo" durante comemorações da Semana Farroupilha com eventos e jantares típicos

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    Confira o teor da manifestação das procuradoras do Município de Capão do Leão:

    "Neste 16 de Setembro
    No CTG deste pago
    Convidamos a todos presentes
    Para homenagear nosso Estado

    Saudamos a gauchada
    Bem como vossas excelências
    Campeando uma solução justa
    Para os problemas desta querência

    Um pedido tão singelo
    Que merece prosperar
    Tendo em vista a necessidade
    De casas para morar

    No bairro Parque Fragata
    Há muita terra para usar
    Ansiado está o município
    Para construir moradia popular

    O Ministério Público do Estado
    Opinou sem receio
    Que o Capão do Leão tem razão
    E atendeu ao nosso anseio

    É o momento de pedir
    Nesta ação de retificação
    Que seja alterado o registro
    Para possibilitar habitação

    Desta feita Senhor Juiz
    Profira justa decisão
    E dê a procedência
    Para o nosso Capão do Leão."

    Confira o teor da manifestação do Ministério Público:

    "O município de Capão do Leão
    De uma área foi donatário
    Correu frouxo no vizindário
    Sua específica finalidade:
    Construir para a cidade
    Praça, igreja e educandário.

    A área total, muito grande
    Recebeu as obras prometidas
    Mas não pode dar guarida
    Para igreja e posto policial
    Pois não era constitucional
    O município pagar esta lida.

    Apesar de todas as obras
    Concluídas e apresentadas
    Há áreas a serem utilizadas
    Para outras finalidades
    Que interessam à cidade
    E às pessoas descapitalizadas.

    Consta na petição inicial
    Que a terra está ociosa
    E que uma enchente odiosa
    A muitos munícipes atingiu
    Como se viu em verso e prosa.

    Diante da situação narrada
    Surgiu a necessidade
    De reorganizar a cidade
    E proteger essa pobre gente
    Pois vá que uma nova enchente
    Desmanche tudo de verdade.

    Todos têm direito à moradia
    Que seja digna é fundamental
    Está lá no texto constitucional
    E a responsabilidade é do prefeito
    Que pediu ao juiz de direito
    Autorização muito especial.

    Contou que naquela oportunidade
    Tentou encontrar o doador
    Buscou-o em cada corredor
    Mas não o encontrou no final
    Expediu e publicou edital
    Sem sucesso, sem valor!

    Aquela ação foi procedente
    O juiz autorizou a construção
    Determinou a averbação
    Na matrícula já descrita
    Casas foram construídas
    Os atingidos viram a solução.

    Mesmo com todas as obras
    Na área doada já realizadas
    Há ainda pessoas necessitadas
    Está ocioso aquele espaço, e
    Dando-se hoje um novo passo
    As provas serão analisadas.

    Esclarece o Município
    Aqui o autor da ação
    Que a sua pretensão
    Encontra amparo legal
    E que não há nenhum mal
    Da finalidade a alteração.

    É de relevante interesse público
    A construção de novas moradias
    Bem assim o doador queria
    Quando estipulou o objetivo
    Que o interesse era coletivo
    E era isso o que se via.

    Documentos foram juntados
    A pedido do MP
    Que quis pagar para ver
    A verdade que fora dita
    E veio a prova bendita
    A comprovar o dizer.

    Veio cópia do outro processo
    Veio a lei municipal de 90
    Que disse com todas as letras
    Que o município podia receber
    Aquelas terras para fazer
    Praça, posto, escola, igreja.

    Para atender ao Parquet
    O pedido foi reformulado
    Para que fosse acatado
    Com as devidas averbações
    Para atender às populações
    Com a expedição de mandado.

    Analisando o petitório
    E os anexos documentos
    Entendi que neste momento
    Não há óbice ao pedido
    O desejo do doador foi atendido
    Na área doada em comento.

    Como ainda tem espaço
    Naquela área original
    Não atende à função social
    Apregoada à propriedade
    Entendo, na verdade
    Por acatar o pedido tal e qual.

    Deve-se incluir na finalidade
    Que a área é para loteamento
    Mas não se pode excluir do comento
    Que é para pessoas de baixa renda
    E assim encerro a contenda
    Sobre o terreno e seu aproveitamento.

    A intenção do doador
    Resta, sim, preservada
    Pois viver em digna morada
    É um direito coletivo
    A procedência do pedido
    Deve, pois, ser acatada.

    Neste mês de setembro
    Do ano de dois mil e quinze
    Já bem perto do dia vinte
    Dia especial pra o gaúcho
    Que apenas tem por luxo
    Um galpão pra seu requinte.

    Desta forma me despeço
    Nesta terra fronteiriça
    E a este parecer assina
    Com a caneta em um só golpe
    Rosely de Azevedo Lopes.
    Promotora de Justiça."

    Versos de autoria de Andréia de Almeida Barros.

    Confira o teor da sentença:

    "O processo que está sob juízo
    Tem o Município por requerente
    Impõe-se que se resuma previamente
    A situação nos autos explanada
    E o faço em forma de pajada
    P'ra ser entendido por toda a gente

    Segundo se lê dos autos
    O Município recebeu grandiosa doação
    Mas deveria proceder em contraprestação
    A edificações no terreno
    Um trabalho nada pequeno
    Para a Prefeitura de Capão do Leão

    Contou em breves linhas o autor
    Que procedeu às exigências da doação
    Escolas, posto de saúde e praça fez construção
    E disse que nada mais foi olvidado
    Que o Posto Policial é competência do Estado
    E igreja não pôde, porque afronta a Constituição
    Requereu, assim, o postulante
    Fosse o registro donativo alterado
    Disse que outro juiz havia concordado
    Com a construção de casas populares
    Mas, p'ra fazer outras moradas similares
    Esta ação havia impetrado

    Acostados os documentos de praxe
    O Ministério Público foi ouvido
    Recomendou a emenda do inicial pedido
    E o autor logo providenciou
    Expôs melhor o causo, documentos juntou
    Para ver o seu pleito atendido

    A douta Promotora de Justiça
    Também neste ato quis deferência
    Opinou pela procedência
    Assim como o Município
    Que, reportando às palavras do princípio
    Quis resultado favorável nesta audiência

    E, tendo-lhes relatado, decido
    Anunciando, de início, com certeza
    A demanda é de tamanha singeleza
    Tal como é grande a alma do verdadeiro gaúcho
    Que dispensa uma vida de luxo
    Desde que tenha um lar, uma mesa

    Do relatório se pode perceber
    Que o processo não é contencioso
    Havia um interesse muito zeloso
    De serem levantadas grandes obras
    Mas, de que valem tantas sobras
    Se ao povo faltar morada, bem mais precioso

    O Município cumpriu a sua parte
    Conforme a documentação retrata
    É preciso não ser burocrata
    E deixar que o interesse coletivo permaneça
    A fim de que Capão do Leão cresça
    Ainda mais no Loteamento Parque Fragata

    Deste modo, tem razão o Município-autor
    Pelo que julgo procedente o feito
    Determinando ao Registro o ajeito
    Nos moldes do pedido inicial
    Assina Marcelo Malizia Cabral
    Juiz de Direito."

    Versos de autoria de Henrique Alam de Mello de Souza e Silva.

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