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    Polícias de SP resistem à figura de delegado 'pacificador'

    ROGÉRIO PAGNAN
    DE SÃO PAULO
    VENCESLAU BORLINA FILHO
    ENVIADO ESPECIAL A LIMEIRA

    07/11/2015 02h00

    Zanone Fraissat/Folhapress
    O delegado Cloves Rodrigues idealizou a iniciativa para resolver conflitos em Ribeirão Corrente (SP), que não tinha fórum
    O delegado Cloves Rodrigues idealizou a iniciativa para resolver conflitos em Ribeirão Corrente (SP), que não tinha fórum

    Uma das práticas da Polícia Civil de São Paulo mais elogiadas pelo próprio governo, que coloca o delegado como pacificador de conflitos, se espalha por dezenas de cidades do Estado, e até fora dele, mas continua sem previsão de chegada à capital.

    O principal motivo disso não é um eventual litígio com o Ministério Público ou com o Poder Judiciário, mas, sim, pela resistência dos próprios policiais da região metropolitana em aderir ao modelo. A resistência já dura 11 anos.

    A ideia da polícia pacificadora surgiu da experiência de um delegado de Ribeirão Corrente (a 422 km São Paulo) que, em 2003, criou uma ferramenta para tentar suprir a deficiência de um município sem fórum local.

    Como quase todas as reclamações feitas pelos moradores ficavam sem uma análise do Judiciário ou chegavam tardiamente, o delegado Cloves Rodrigues da Costa resolveu tentar fazer conciliações.

    A primeira audiência se deu com dois moradores que, em razão de uma discussão banal, um deles acabou danificando o carro do outro.

    Os dois foram chamados dias depois à delegacia e, após breve conversa na presença do policial, uma parte aceitou a pagar as despesas do conserto do veículo. E, a outra, aceitou receber o dinheiro em parceladas.

    O histórico do ocorrido foi assinado e enviado ao juiz de Franca, Luiz Pinheiro Sampaio, que, apesar do ineditismo da medida, concordou haver previsão legal (com base na lei nº 9.099/95) e homologou o acordo.

    O sucesso dessa primeira conciliação rodou o Estado e, em 2010, foi criada na região de Bauru a primeira unidade para tratar exclusivamente de conciliações, o Necrim (Núcleo Especial Criminal).

    De lá para cá, apesar de críticas por parte de membros do Ministério Público, mais 35 cidades aderiram à ideia de conciliar e audiências ganharam força. A mais recente cidade a implantar o núcleo foi Santos, em agosto.

    A implementação oficial da modalidade de polícia se deu em 2010. Pelas contagens oficiais, em quatro anos foram mais de 50 mil audiências. Em 2014, por exemplo, foram mais de 19 mil acordos com 91% de sucesso. A cada 10 audiências, em 9 delas houve acordo entre as partes.

    ESPERA MENOR

    São discutidos crimes de pequeno potencial ofensivo como calúnia, difamação, injúria e crime de trânsito.

    A média de espera é de 40 dias e, após homologado pelo Judiciário, o acordo tem valor de uma sentença (para efeitos de execução cível).

    Além desafogar o moroso Judiciário, a intervenção da polícia em pequenos conflitos também busca evitar o agravamento do problema. Que uma simples briga de vizinhos acabe se tornando em um homicídio doloso.

    A presidente da Associação dos Delegados, Marilda Pansonato Pinheiro, afirma que pelo que tem conhecimento, os policiais da capital têm consciência da importância do Necrim e que a não implantação deve mais por uma questão da "administração".

    "É uma resposta que eu não tenho. É uma questão de desejar fazer. De querer fazer. Porque é um trabalho extra para o delegado, mas tem custo zero para o Estado", diz a delegada Marilda.

    A Folha questionou a Secretaria da Segurança Pública o porquê de a capital paulista ainda não ter uma unidade do Necrim e, também, se já havia alguma previsão de quando isso poderia ocorrer. na cidade O governo Geraldo Alckmin (PSDB) não quis responder.

    Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
    Delegado Siddhartha Leão (ao fundo, à esq.) conduz audiência que busca conciliação entre partes em Limeira (SP)
    Delegado Siddhartha Leão (ao fundo, à esq.) em audiência de conciliação em Limeira (SP)

    LIMEIRA

    Em junho, o montador Franquins Soares de Oliveira, 23, registrou uma ocorrência na polícia após uma discussão com o patrão, Marcelo Aparecido Monteiro, 40. "Ele [patrão] disse: 'Você não sabe do que eu sou capaz'", conta. Na sexta-feira (14), os dois, enfim, se entenderam.

    A conciliação foi possível graças ao Necrim (Núcleo Especial Criminal), órgão da Polícia Civil que busca evitar a judicialização de infrações de menor potencial ofensivo. A audiência ocorreu em Limeira, na região de Campinas, onde o serviço é oferecido desde março de 2013.

    Oliveira e Monteiro chegaram sozinhos, sem advogados ou testemunhas. O clima era amigável. Os dois foram recebidos pelo delegado Siddhartha Carneiro Leão, responsável pelo Necrim do município, e ficaram frente a frente numa sala semelhante à de um juiz. A audiência durou 15 minutos.

    O delegado, acompanhado de um estagiário do curso de direito, fez um histórico do caso e deu a palavra ao empregado, que confirmou a versão. Em seguida, foi a vez de o patrão falar.

    "Foi um mal-entendido. Ele queria ser mandado embora, estava fazendo corpo mole. Então me estressei e acabei falando algumas coisas", disse Monteiro. "Eu não quis ameaçá-lo. Daria umas advertências e depois o mandaria embora", completou.

    Oliveira disse que fez o boletim de ocorrência para se preservar. "Imaginava que seria chamado pela polícia, mas não para fazer um acordo. Estou contente com o resultado", afirmou o montador.

    "Não precisava ter chegado aonde chegou. Já estamos bem", emendou Monteiro.

    Ambos assinaram o acordo feito pelo delegado e se cumprimentaram. O patrão prometeu demitir o funcionário e pagar os direitos trabalhistas. O empregado, por sua vez, disse que já sabe o que fazer depois que for demitido. "Vou trabalhar com um amigo", contou.

    No mesmo dia, a polícia facilitou o entendimento entre Eliana, 48, e Elisabeth, 32, que pediram para não ter os sobrenomes revelados.

    Elas se envolveram em um acidente de trânsito em Limeira, e a vítima, Elizabeth, ficou com o prejuízo de R$ 450, entre o reparo da moto e o atendimento médico.

    "Só fiz o boletim [de ocorrência] porque tratava-se de um acidente de trabalho", disse a vítima. "Mas a senhora não quer que ela [Eliana] pague pelos danos na moto e os gastos com remédio?", perguntou o delegado. "Não precisa. Já está tudo certo", respondeu. "Agora somos amigas", disse Eliana.

    Somente neste ano houve 666 conciliações em Limeira, o que corresponde a 98% do total de casos avaliados.

    Por dia, são cerca de 20 audiências, que não duram mais de 20 minutos. Quanto mais simples o caso, mais rápida a solução. "É bem mais rápido e menos burocrático do que se fosse para a Justiça", disse Monteiro.

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