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    Quase extinto, pássaro famoso pelo canto será reintroduzido na natureza em SP

    JULIANA GRAGNANI
    DE SÃO PAULO

    10/11/2015 02h00

    Há pelo menos 20 anos, o bicudo se calou. Esse pássaro de bico robusto, conhecido pelo canto que mais parece uma flauta, sumiu da natureza por causa da caça e da destruição de seu habitat.

    Um grupo de pesquisadores, porém, vai reintroduzir as aves a seu ambiente natural.

    O objetivo, a longo prazo, é criar uma nova população desses pássaros. Segundo o Ibama, o bicho está "criticamente ameaçado". O Brasil deve ter no máximo 200 bicudos soltos, estima o ornitólogo Luís Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da USP e coordenador do projeto. No Estado de São Paulo, o pássaro está extinto.

    Nesta quarta (11), o primeiro de dez casais será solto em uma reserva protegida no interior do Estado de SP.

    Aos poucos, os 20 pássaros voarão pelo brejo, monitorados pelos ornitólogos e protegidos pela polícia ambiental e por seguranças privados.

    O local não é revelado, a pedido dos pesquisadores, para proteger os bicudos da caça.

    Essa atividade é a principal causa de sua desaparição. O tráfico é motivado principalmente pelo canto, que eleva seu valor para até R$ 80 mil –há relatos de um pássaro negociado por R$ 330 mil.

    O autor do som flauteado é o bicudo macho adulto, que é preto, territorialista e briguento. Fêmea e bicudos jovens são marrons, como alguns dos que serão soltos.

    Escute o canto do bicudo

    BATUQUE E FIOTE

    Parte dos pássaros doados para o projeto veio de criadores. São aves que nasceram em cativeiro, criadas para participar de torneios de canto. Se há no máximo só 200 bicudos na natureza, há cerca de 50 mil bicudos em cativeiro, segundo criadores.

    Diretor ambiental da Feosp (Federação Ornitológica de SP), Adir Dias da Silva Júnior admite que um ancestral dos pássaros que cria já foi antes caçado. Hoje, "o que vai salvar o bicudo é a sua criação em cativeiro, com a reprodução em casa", diz ele, que é um dos doadores.

    Seu objetivo de vida, conta, é criar um filhote "que cante o canto perfeito".

    A perfeição, no caso, seria chegar aos pés do Batuque ou do Fiote, dois bicudos célebres no país por criar, entre os anos 1970 e 90, "padrões reais", sucessões de mais de 20 notas musicais de passarinho.

    É improvável que os bicudos que serão soltos atinjam essa afinação. Sem bicudos maestros ou CDs com o som perfeito para escutar, vão enfrentar outros desafios.

    Sinalizados com anilhas, estão num viveiro de 3 m² no meio da reserva ambiental, sujeitos a chuva, sol e vento, dos quais estavam protegidos no cativeiro e com os quais têm de se acostumar agora. No processo, um morreu.

    Os outros estão se adaptando bem, segundo o ornitólogo Flávio Ubaid, que participa do projeto. Antes de serem soltos, ficarão no viveiro cerca de dez dias, um tempo teste de adaptação.

    A soltura será "branda", conta Silveira, uma técnica que deixa a gaiola, com água e comida, como referencial do pássaro. De uma alimentação a base de ração no cativeiro e sementes no viveiro, passarão a se alimentar na natureza com capim-navalha.

    Também estarão expostos a predadores como gaviões e corujas. O sinal de sucesso do projeto será a reprodução das aves em seu novo lar.

    Escute o canto do bicudo

    BICUDO-FANTASMA

    Um estudo taxonômico (detalhamento das características) do bicudo também fez parte do projeto –algo inédito. Os biólogos pesquisaram em museus norte-americanos e brasileiros, colheram sangue de bicudos em cativeiro e do único casal que encontraram na natureza em dois anos de procura.

    Foram 1.500 horas de buscas no Parque Nacional das Emas (GO), que tem 132 mil hectares, por exemplo. Nada ali, nem em outros lugares onde o bicudo já havia sido registrado no Brasil, como em Minas. As aves só foram encontradas no sul de Mato Grosso. "A sensação de ver um bicudo no mato é como ver um fantasma", diz Silveira.

    O projeto, com um custo de R$ 250 mil, foi financiado pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade e desenvolvido pelo Museu de Zoologia da USP e a UFSCar. Foi apoiado pela ONG Instituto Pró-Terra, o Parque Ecológico do Tietê, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de SP e a Feosp.

    CANTO DE BICUDO NA NATUREZA

    Ouça

    Gravação de bicudo em Goiás, 2009, por Bruno Lima

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