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    Infanticídio de índios ainda é comum em aldeias da Amazônia

    MARCELO TOLEDO
    ENVIADO ESPECIAL A CARACARAÍ (RR)

    21/12/2015 02h00

    Em uma aldeia indígena de Caracaraí, pequena cidade de Roraima, a jovem de 21 anos dava à luz o seu quarto filho, e desesperou-se ao notar que o recém-nascido tinha uma má-formação na perna. Mesmo já sabendo o que ia acontecer, consultou os líderes da sua tribo ianomâmi.

    O bebê não chegou a ser amamentado. Passou por um ritual, em que foi queimado vivo. As cinzas foram usadas para preparar um mingau, oferecido a todos da tribo. A índia contou a parentes que ficou triste, pois queria cuidar da criança. Mas entendeu que era a tradição.

    A morte de bebês, geralmente com até seis dias de vida, é praticada, segundo lideranças indígenas, entre tribos ianomâmis, menos aculturados e de recente contato com o homem branco.

    Ocorre, na maioria dos casos, quando a criança nasce com alguma deficiência física. Mas há também mortes de gêmeos ou por suspeita de que a mãe cometeu adultério ou foi estuprada.

    INFANTICÍDIO INDÍGENA - Mortes de índios entre 0 e 6 dias de idade

    Onde fica Caracaraí, Barcelos e Alto Alegre

    Para o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor do "Mapa da Violência", as mortes de bebês índios não deixam de ser assassinato, por mais que a prática seja vinculada à cultura. "Não se deve criminalizar o índio, mas tem de agir para salvar essas vidas."

    Secretário do Índio de Roraima, Ozélio Macuxi, 49, discorda do projeto. Para ele, o ato é, acima de tudo, uma tática de sobrevivência desses povos, por vezes nômades.

    "Como vai carregar uma pessoa com deficiência [na mata]? Para pagar esse pecado, é melhor eliminar logo. Entendi dessa forma [o ritual]", disse, ao ressaltar que animais e cipós são obstáculos para um índio deficiente.

    Em algumas tribos, as crianças são enforcadas. "[Quem decide] é a própria mãe. Segura o pescoço e já enterra", conta Jonas Ianomami, 41, de Barcelos (AM).

    Em dois anos, foram registradas 96 mortes de bebês indígenas de até seis dias de idade em Barcelos, Caracaraí e Alto Alegre, também no Estado de Roraima, segundo o "Mapa da Violência 2015".

    Não é possível saber se esse número já foi maior, porque não há estatísticas.

    Para Jonas e Ozélio, a morte dos bebês faz parte da identidade cultural desses povos indígenas e não cabe ao homem branco entender.

    Mas o assunto está na pauta do Senado desde setembro, após a Câmara aprovar projeto de lei do ex-deputado Henrique Afonso (PV-AC), que prevê criminalizar, por omissão de socorro, quem não informar o infanticídio ou qualquer outra prática que atente contra a saúde e a integridade dos índios.

    A medida inclui ONGs, poder público, Funai (Fundação Nacional do Índio) e qualquer cidadão. Pelo projeto, o índio não é punido. Mas cabe ao poder público proteger e auxiliar o índio que "decidir não permitir, expor ou submeter crianças a práticas que coloquem em risco a vida."

    Em Roraima, a governadora Suely Campos (PP) diz que, muitas vezes, nem fica sabendo das mortes. "É uma questão deles, que começa e acaba lá [na aldeia]."

    A proposta, conhecida como Lei Muwaji –em homenagem a uma mãe da tribo dos suruwahas que não permitiu a morte da filha deficiente–, levou quase oito anos para ser aprovada na Câmara.

    A Associação Brasileira de Antropologia e ONGs ligadas aos índios dizem que o projeto tira a garantia desses povos à sua identidade. Argumentam ainda que o infanticídio é "residual".

    "Por que deputados e senadores discutem isso sem consultar os indígenas?", questiona Maurício Yekuana, da ONG Hutukara.

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    PRINCIPAIS PONTOS DO PROJETO

    De autoria do ex-deputado Henrique Afonso (PV-AC) acrescenta artigo à lei 6.001, de 1973 (Estatuto do Índio), que cita o respeito às práticas indígenas, sempre que estejam em conformidade com os direitos estabelecidos na Constituição

    Prevê, entre outros:
    > União, Estados, municípios e autoridades ligadas à política indigenista deverão proteger os índios contra práticas como:

    a) Infanticídio ou homicídio
    b) Abuso sexual ou estupro individual ou coletivo
    c) Escravidão
    d) Tortura, em todas as suas formas
    e) Abandono de vulneráveis
    f) Violência doméstica

    > Os órgãos deverão proteger e auxiliar o índio que decidir não permitir, expor ou submeter crianças a práticas que coloquem em risco a vida, a saúde e a integridade

    > Deverão desenvolver projetos para proteger índios rejeitados por um dos genitores, familiares ou pelo grupo, em caso de gestação múltipla, deficiência física e/ou mental, em virtude de o sexo não ser o desejado ou quando houver marca de nascença que o diferencie

    > Aponta ser dever de todos que tenham conhecimento das situações de risco informar atos que violem a vida, a saúde ou integridade de gestantes e recém-nascidos e responsabiliza autoridades quando não adotarem medidas para proteger e defender índios em situação de risco

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    A FAVOR DO PROJETO

    Presidente do conselho da organização social Atini, que busca prevenir o infanticídio entre índios, Márcia Suzuki diz que a prática é comum em mais de 20 etnias.

    Folha - Por que a sra. é favorável ao projeto?

    Márcia Suzuki - Da mesma forma que países na África começam a aprovar leis que proíbem a mutilação genital feminina, o Congresso avança ao apoiar a Lei Muwaji. Há grupos que se opõem e tentam jogar cortina de fumaça, dizendo que os indígenas serão criminalizados. A lei não visa em nenhum momento colocar índias na cadeia, nem impor nada.

    Por que há oposição?

    Ele é defendido por missionários, e isso incomoda os antropólogos. Servidores da Funai se opõem por não querer essa responsabilidade.

    Há outras etnias, além dos ianomâmis, que praticam o ritual hoje?

    Há farta literatura e documentários que indicam que a prática ainda é comum em mais de 20 etnias. O Senado mostrará bom senso e sensibilidade à dor das mães indígenas que sofrem ao ver filhos que amam serem enterrados vivos, sufocados com folhas ou abandonados na mata para morrer à míngua.

    Toda criança, independentemente da etnia, tem direito à vida e à dignidade.

    *

    CONTRA O PROJETO

    Para Antonio Carlos de Souza Lima, presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), o projeto faz parte de um plano para retirar os direitos dos índios.

    Folha - Como o sr. avalia o projeto?

    Antonio Carlos de Souza Lima - Faz parte de um conjunto de outras medidas que busca criminalizar os povos indígenas no Brasil. O projeto do infanticídio tem a ver com o fato de que, assim, se mobiliza o tema infância, moralmente candente.

    Polariza a opinião pública, trata índios como se fossem selvagens bárbaros e, com isso, faz passar a imagem de que têm de acabar, se transformar naquilo que o homem branco quer, abrindo mão de suas terras, seus recursos.

    O infanticídio é restrito aos ianomâmis ou há outras etnias que o praticam?

    Não temos nenhum estudo que mostre que está em prática aqui ou ali. Lembro o seguinte: a quantidade de bebês do sexo feminino dados como natimortos na Índia é estupenda, e ninguém chama de infanticídio. Assim como a gente tem genocídio da população jovem negra no Rio. Isso não vira CPI nem projeto de lei. A quem interessa uma questão que é residual, que fala muito mais de um passado que um presente de povos indígenas?

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