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    Minha História

    Nina Maluf

    Especialista em preparar defuntos gosta de recuperar faces destruídas

    (...)Depoimento a
    CAMILA APPEL
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    21/12/2015 02h00

    Nina Maluf atua nos bastidores da morte. Oferece cursos sobre sua área de atuação, como tanatologia, necromaquiagem e reconstrução facial –seu predileto.

    Mãe de quatro filhos, trabalha em casa e acha natural ver as crianças brincando de "enterrar", pois o assunto deve ser tratado com naturalidade e o preconceito com a morte, no Brasil, gera uma carência de bons profissionais.

    "A morte é minha amiga", diz.

    Moacyr Lopes Junior/Folhapress
    Nina Maluf com seus utensílios de trabalho no cemitério do Araçá, em São Paulo
    Nina Maluf com seus utensílios de trabalho no cemitério do Araçá, em São Paulo

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    Quem sou eu? Eu sou uma mãe de quatro filhos que trabalha em casa. Só saio para os atendimentos em laboratórios e em velórios e para dar os cursos da minha escola, a Tanathology.

    São cursos para o Brasil inteiro sobre o primeiro contato com a família do morto, o preparo do corpo, necromaquiagem, reconstrução de face e tanatopraxia -que é o processo de conservação do corpo para velórios e translados.

    Os cursos são feitos por pessoas leigas que querem entrar no setor e por profissionais que já atuam na área. Não há pré-requisitos, mas para trabalhar em uma funerária é preciso ensino médio completo.

    O que eu mais gosto de fazer é reconstrução facial. Pegar um cara bem destruidão e deixar ele igual ao que era. Como em casos de acidentes de carro e de moto. Eu gosto do desafio de pegar uma pessoa que, teoricamente, não teria mais condições de ter um caixão aberto e poder oferecer isso para a família.

    O assunto em casa é morte de manhã, à tarde e à noite. Até porque meu marido trabalha comigo. Às vezes eu chego e minha pequena de seis anos pergunta: 'Mãe, quantos corpos você fez hoje?'. A primeira vez que ela perguntou eu assustei, mas agora acostumei.

    Eu faço uma terapia de choque com o meu mais velho [de 13 anos], mostrando casos de overdose ou de alcoolismo. Meu caçula de três anos brinca de enterrar. Ele coloca os irmãos no chão e os enterra com travesseiros.

    Já peguei minha filha mexendo no computador, com o telefone na orelha brincando de atender cliente, perguntando: "Que horas vai ser o velório?". Na cabeça deles é tudo muito normal, e eu quero que continue assim.

    Minha paixão em lecionar é formar profissionais que sejam humanos. Busco qualidade, e qualidade é a humanização. É você ter paciência com o cliente, saber explicar o procedimento para ele, saber vender um serviço sem ser agressivo. Muita gente destrata as famílias e os corpos.

    No primeiro dia de aula eu falo para quem quiser ouvir: "Se você está aqui por dinheiro, a porta da rua é a serventia da casa". Tem que estar lá por amor à profissão, querendo e gostando desse serviço.

    Quem chega por grana não vai aguentar a barra. Vai entrar no álcool, que é muito comum, ou não vai aguentar a carga horária e partir para outras drogas, como a cocaína.

    Só o amor pelo trabalho manterá as pessoas minimamente sãs. Pegar o corpo de uma criança, por exemplo, é devastador. Criança saudável só morre por irresponsabilidade de adulto. Eu não estou aqui para julgar, mas não tem como não ligar.

    Nosso setor foi um dos poucos que não foi atingido pela crise. As pessoas continuam morrendo, elas não têm escolha. É um mercado que tem crescido porque os empresários estão começando a sentir a necessidade de mostrar que nosso setor é necessário. Na Europa, somos muito valorizados.

    As crianças são criadas para entender que as pessoas nascem, vivem e morrem. No Brasil, existe a cultura do preconceito com a morte. Isso gera uma carência de bons profissionais.

    Desde pequenininha, eu era meio Wandinha, aquela personagem da Família Addams. Quando morria algum bicho no bairro, de peixe a cachorro, me chamavam no portão para eu organizar o enterro. Eu fazia velório, cortejo e enterro. Hoje, meus vizinhos, uma boa parte deles, têm medo de mim. Uns me acham louca, outros falam que eu tenho o cão no corpo. Eles têm medo de morrer, medo da morte, acham tudo isso muito esquisito.

    Não tenho medo da morte em si, mas de deixar meus filhos sozinhos neste mundo louco. Vejo as pessoas morrendo das formas mais estúpidas e gente fazendo maldade de forma gratuita. Hoje em dia, fala-se em crime passional como se fosse algo normal. É uma justificativa jurídica para uma atrocidade.

    O número de casos desse tipo de crime é assustador e eu vejo no trabalho que eles têm crescido.

    O que é a morte para mim? Ah, a morte é minha amiga.

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