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    Depoimento

    Viajei mais de 5.000 km do Sul ao Nordeste com R$ 176,50 no bolso

    JOEL SILVA
    DE ALGUM LUGAR DO BRASIL

    10/01/2016 02h27

    Durante 36 dias vivi na estrada. Saí de São Paulo rumo ao Chuí e de lá, na fronteira com o Uruguai, parti de carona pelo Brasil. Após 21 anos de jornalismo diário, precisava dar um tempo, respirar e me perder país adentro.

    Percorri 5.089 km. Foram 31 caronas, sob sol e chuva. Tomei banho em rios e em postos de gasolina, acampei em fazendas, na beira de estradas e, principalmente, tive a ajuda de desconhecidos.

    Sem nenhum tipo de planejamento, fui para o ponto mais ao sul do país em 14 de setembro. Carregava nas costas uma mochila com 19 kg com itens de sobrevivência. Sempre que possível de carona, viajei, em média, 140 km por dia. Passei por 10 rodovias federais, 28 estaduais e outras 4 vicinais.

    A rota foi sempre resultado do acaso. Segui só uma regra: evitar cidades grandes e conhecer o máximo possível de lugares e pessoas com histórias para contar. De preferência, diferentes das que vivi ao longo do tempo em que fotografei guerras, desastres naturais e violência urbana.

    Nesse caminho, fiz amizades, convivi com caminhoneiros, motoristas, vendedores, frentistas, andarilhos e peões.

    Às vezes demorou para aparecer, mas todos os dias consegui algum auxílio. Comida, lugar para dormir, para tomar banho e caronas não faltaram.

    Cheguei a esses lugares sempre levado pela curiosidade, indicação e insistência de quem me deu carona. "Rapaz, você tem que conhecer Grão Mogol, foi toda feita de pedras pelos escravos", me alertou empolgado o operador de máquinas Márcio Adriano, 37, pouco depois que subi em seu carro. Ele fez questão de andar 50 km fora de sua rota para me apresentar o lugar no norte de Minas.

    Dormi poucos dias em cidades. Na maior parte das vezes, acampei na estrada.

    Para não acordar sem a máquina fotográfica com que registrei minha jornada, abria buracos na terra perto da barraca quando a noite caía. Neles, colocava meus pertences e cobria com galhos.

    Levei comigo dois celulares velhos. Se fosse abordado por um ladrão, ele não sairia de mãos abanando.

    O medo, porém, não era só meu. Caminhoneiros andam mais desconfiados, contam histórias de assaltos e sequestros cada vez mais violentos.

    Quando meu dinheiro estava quase acabando, fui trabalhar. Em Mauá da Serra (PR) descolei R$ 200 tocando búfalos. Em Presidente Prudente (SP), outros R$ 70 para ajudar a descarregar um caminhão de batatas.

    Fui para a estrada respirar. Encontrei ajuda e uma realidade bem diferente da que vi em 1989, quando saí de casa para "conhecer o mundo", também de carona.

    Daquela vez, cruzei cinco Estados e vi um país que se preparava para eleger o primeiro presidente pelo voto direto após o fim da ditadura militar. Era também época de grave crise econômica e inflação estratosférica.
    Desta vez, foram oito Estados em um Brasil completamente diferente, socialmente mais justo e mais rico, mas que, ironia do destino, vive novamente os efeitos de outra (grave) crise econômica.

    Após cerca de 3.000 km, os 19 kg às minhas costas cobraram um preço: dor e inflamação no ombro direito. Aguentei o quanto pude. Viajei ainda mais 2.000 km e fui parar em Piranhas (AL), onde as cabeças de Lampião e seu bando foram expostas após serem mortos, em 1938.

    Não deu para ir além. Da mesma forma que fui para a estrada, 36 dias depois decidi que era hora de sair dela.

    A maioria dessas experiências foi registrada no blog "Maluco de BR". Leia abaixo algumas dessas histórias:

    Mochila do Joel

    "Ei, aquela Troller ali está indo para Santa Catarina e pode te levar", disse o frentista correndo em minha direção como se anunciasse o prêmio da Mega-Sena.

    Em São José do Norte (a 300 km de Porto Alegre), essa foi a primeira carona que arranjei em um posto de gasolina. Durante os 36 dias em que viajei do Sul ao Nordeste do Brasil, isso seria rotina.

    Havia saído do Chuí com R$ 176,50, montado no caminhão de Mujica, um uruguaio apreciador dos efeitos socializantes da maconha e defensor do ex-presidente do país vizinho -daí seu apelido.

    Agora, eu tentava continuar Brasil adentro com o único objetivo de "conhecer" novamente o país e me deixar surpreender pelo caminho.

    Mais duas caronas em postos e ficou claro que os frentistas seriam meus "melhores amigos". Com ajuda deles embarquei na caminhonete de João Augusto dos Santos, 65, um senhor de pouca conversa, bigode farto e que levava no painel uma toalha do Grêmio e um chapéu de palha.

    Ele, que nunca dá carona, e que me aceitou porque os frentistas pediram, fez questão de me deixar em outro posto e pedir para Alemão, um frentista, me ajudar.

    36 dias na estrada

    Assim, no dia 17 de setembro, o quarto de viagem, cheguei ao Malacara, cânion no sul de Santa Catarina.

    Debaixo de um temporal danado, encontrei um camping. Custou, mas consegui dormir com o barulho da chuva que batia na lona da barraca. De madrugada, porém, acordei todo molhado e dei adeus àquela noite de sono.

    Na manhã seguinte, deixei minhas roupas secando e subi em um ônibus escolar até Praia Grande (a 282 km de Florianópolis). Precisava arrumar algo para comer.

    Na cidadezinha de 7.267 habitantes não se via ninguém na rua. As poucas lojas estavam quase todas fechadas. Deveria ser algum feriado.

    Nada disso. Era dia normal, como outro qualquer.

    Ali percebi o tamanho da crise no Brasil. Na porta de uma imobiliária, um cartaz: "Estou perto, ligue." O proprietário deve ter se cansado de esperar. Em outro cartaz, em uma loja de presentes: "Vendo jornal velho". Dentro, não havia um só cliente.

    Após uma semana percebi que no ritmo em que meu dinheiro diminuía precisaria arrumar trabalho. Meus R$ 176,50 já eram R$ 100.

    UCRANIANOS

    Economizando o quanto pude cheguei a Irati (a 155 km de Curitiba). Lá consegui uma carona em um velho Ford F-350 azul todo descascado.

    Hélio Souza, 61, o motorista, disse que ia a Prudentópolis (a 203 km da capital paranaense) para um casamento.

    Pensei em me oferecer aos noivos como assistente de fotógrafo. O motorista disse que não podia garantir nada e perguntou se eu entendia de fotografia. Deixei para lá.

    Prudentópolis é uma cidade de 49 mil habitantes onde se você se perder é bom manter olhos e ouvidos atentos. Tão comum quanto o português, o ucraniano é idioma corriqueiro por ali. Cerca de 75% da população é composta por descendentes.

    Resolvi entrar na igreja de São Josafat, onde uma missa era rezada em ucraniano. Não sou religioso, mas ali fiz meu pedido por emprego, em bom português mesmo. Não demoraria para o santo me ouvir.
    No dia seguinte, chovia e dificilmente conseguiria carona. Fui de ônibus até Ponta Grossa (a 116 km de Curitiba).

    TOCADOR DE BÚFALOS

    Nem bem coloquei os pés na cidade e recebi uma dica de trabalho que me levou até uma fazenda em Mauá da Serra (a 314 km de Curitiba).

    No 16º dia de viagem, minha primeira tarefa foi limpar um galpão cheio de ração para carneiros. No fim da tarde, aprendi que, apesar de mal encarados, búfalos não são tão bravos quanto pensava.

    Com a ajuda dos peões, recolhi cerca de 30 deles e embarquei uma dúzia em um caminhão para que fossem levados para outra fazenda.

    A empreitada me rendeu comida, lugar para acampar e R$ 200 para seguir viagem.

    Da fazenda fui direto para para a BR-376. Duas horas debaixo de sol e embarquei em um caminhão carregado de batatas que ia para Presidente Prudente (a 559 km de São Paulo). Lá, trabalhei novamente. Garanti mais R$ 70 para descarregar tudo. Não por acaso, senti pela primeira vez meu corpo reclamar.

    Voltei para a estrada com uma dor aguda no ombro esquerdo. Tratei de tomar um relaxante muscular. Aquele seria o primeiro de muitos.

    De carona em carona, de remédio em remédio, cheguei a Minas Gerais. Minha primeira parada no sul do Estado foi em Sacramento (a 460 km de Belo Horizonte).
    Quando me preparava para ir embora, um senhor veio conversar comigo -intrigado com a imagem do forasteiro.

    Carlos Alberto Cerchi, 65, é historiador. Contou-me sobre Desemboque, um pequeno arraial. Na vila, moram 27 pessoas, com apenas dois ônibus por semana para sair de lá. Ele se ofereceu para me levar.

    Meu ombro doía e o resto do corpo já não respondia da mesma forma. Uma vez em Desemboque, decidi colocar a barraca no meio da vila e descansar o quanto pudesse.

    À noite, intrigado com o estranho acampamento em frente a sua janela, Lázaro Francisco Paula, 70, resolveu conferir se ele e os outros 26 moradores estavam seguros.

    O lavrador se apresentou. Esticou sua mão áspera e enrugada e apenas encostou na minha -um hábito local. Percebi que ali, onde não há apertos de mãos, a confiança é algo difícil de ser conquistada.

    Ainda intrigado, ele me contou que só saiu de Desemboque uma vez na vida. Ficou fora 11 meses. Voltou porque não aguentou a agitação da "cidade grande": Sacramento e seus 25 mil habitantes.

    CHICO NA UTI

    Parti em direção ao norte. Apesar de estar no mesmo Estado, me sentia quase em outro país. Do sotaque à paisagem, tudo muda a medida em que se viaja por Minas.

    Cheguei a Pirapora (a 349 km de BH) em 8 de outubro. Na entrada da cidade, um vendedor de roupas se ofereceu para me levar ao centro. Ao saber que viajava para "ver o país", disparou: "Você veio ver o Chico na UTI?".

    Não era exagero. No dia seguinte, após arranjar lugar para acampar, fui conferir a penúria do rio São Francisco.

    O nível da água baixou tanto que agora se veem as pedras que ficavam dois metros submersas. O velho barco a vapor Benjamim Guimarães, que levava turistas, está ancorado. Virou palco para a Orquestra Sinfônica Jovem.

    Parti com a nítida impressão de que ela tocava "Sinfonia do Velho Chico" no leito de morte de um dos rios mais importantes do Brasil.

    No dia 14 de outubro, exatamente um mês após começar a viagem, tomei um banho de rio em Grão Mogol (a 545 km de BH). Deixei Minas para trás e entrei na Bahia.

    FEBRE

    O banho gelado, no entanto, me rendeu um resfriado. Enquanto atravessava o Estado sentia minha testa ferver.

    De carona em um caminhão que encontrei parado à espera de reparo na BR-116, minha temperatura subia a medida que me aproximava de Feira de Santana.

    Viramos a madrugada viajando. "Rapaz, você delirou a noite toda. Precisa cuidar disso", disse o motorista. Com febre, entrei na cidade e corri para uma farmácia.

    No fim da tarde me sentia melhor. Resolvi arriscar. Três caronas seguidas me levaram a Piranhas (a 274 Km de Maceió), a cidade para onde as cabeças de Lampião e seu bando foram levadas após serem mortos em Sergipe.

    No 36º dia, sem febre, restava-me ainda a dor no ombro que não me abandonara e agora me impedia de carregar a mochila. Já havia conhecido novamente boa parte do meu país, era hora de voltar. Entrei em um ônibus e parti.

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