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    Vigia aposentado improvisa UTI para filho dentro de barraco

    CHICO FELITTI
    COLUNISTA DA FOLHA

    06/03/2016 02h00

    Da janela do barracão de tijolo onde vive há seis anos, Davi Santiago de Souza, 37, vê um par de construções de sete andares que são ao mesmo tempo seu futuro e passado.

    O vigia aposentado ajudou a construir os dois prédios, em um esquema de mutirão da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) iniciado em 2009 em Jova Rural, na zona norte.

    Os edifícios foram prometidos para 2010. Souza, porém, ainda não se mudou para o apartamento de dois quartos. "Achei por muito tempo que lá era minha casa. Agora já não sei", afirma.

    Ele ergueu no estacionamento do conjunto habitacional uma construção de madeira que, posteriormente, ganhou estrutura de alvenaria. A mudança para o canteiro de obras ocorreu em 2009.

    Um dos 27 beneficiados com um apartamento subsidiado no conjunto, Souza foi escalado para ser o zelador da obra, em assembleia da associação de moradores Nova Conquista. O grupo de liderança regional executaria o prédio com repasses do governo de R$ 780 mil, segundo o primeiro contrato.

    A família pretendia morar no estacionamento só pelos 18 meses da obra, para evitar saques. "Tive que correr atrás de muito bandido com peixeira na mão", diz o vigia, que se aposentou quando a doença de Best, que causa distrofia da retina, o deixou com 40% da visão.

    Nove meses depois de o mutirão começar, quando as paredes e escadas dos prédios já estavam levantadas, o contrato foi rompido pela CDHU. O órgão afirma que o convênio não foi cumprido e, por isso, dispensou a associação. Já a entidade afirma que não só respeitava o acordo, como o fazia por um valor menor do que o estipulado.

    Enquanto a CDHU abria licitação para uma empresa terminar a construção, Souza seguiu vivendo na obra parada. Em 2013, nasceu Erick, com paralisia cerebral. Para ter direito à assistência constante de enfermeiros e fisioterapeutas, pagos pelo plano de saúde, Davi montou uma UTI no barracão. Calcula que tenha R$ 24 mil em dívidas.

    Um ano depois, o contrato com outra empresa foi rompido. Abriu-se uma nova concorrência e, em 2015, a construtora Itajaí foi escolhida.

    Enquanto isso, o morador do estacionamento decidiu estudar enfermagem. "Prometi que, se o Erick passasse de três anos, eu faria enfermagem para cuidar dele. E o Erickão ganhou a aposta", diz Souza, enquanto limpa a sonda usada para alimentar o filho.

    A família vive com os R$ 2.000 da aposentadoria de Souza, mais o Bolsa Família da mãe dos seus filhos, de quem se separou, mas com quem segue morando.

    PRÉDIO FANTASMA

    Em 2014, enquanto as obras estavam paradas, algumas famílias que tinham direito aos apartamentos começaram a ocupar os imóveis –sem acabamento, coleta de esgoto ou ligação elétrica legal.

    Dois dias após ser procurada pela Folha, a CDHU ofereceu a Davi "uma casa térrea, garantindo assim seu direito a uma unidade habitacional". Seu apartamento no prédio iria a uma família na lista de espera.

    O órgão afirma que as unidades já estão prontas, mas, para entregá-las às 27 famílias cadastradas no mutirão, "é necessário concluir a infraestrutura condominial, que só poderá ser executada após a retirada do barracão de obras, onde reside a família do Sr. David".

    O vigia responde: "A culpa do atraso não é minha, juro".

    RACHADURAS E CRATERA

    A menos de 1 km do prédio da família Souza, o conjunto habitacional Tucuruvi B3 da CDHU foi inaugurado há dez anos, mas teve de ser esvaziado algumas vezes desde então.

    Os prédios têm rachaduras causadas pelo afundamento do terreno e sofria risco de colapsar. Condôminos mostraram à Folha rachaduras com espaço suficiente para enfiar a mão.

    Uma licitação para reestruturar o prédio foi aberta em 2015 no valor de R$ 2,2 milhões. A CDHU prevê que as obras terminem em agosto.

    Em outro prédio da companhia, em Franco da Rocha (Grande SP), uma cratera grande o suficiente para engolir um carro se abriu na pista de acesso ao condomínio H do CDHU Chácara Bom Tempo. Moradores afirmam que a vala está lá desde 2010.

    A previsão de conclusão é julho deste ano, afirma a CDHU, que atribui o problema ao entupimento da rede de esgoto nas proximidades.

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