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    Famílias contam histórias de vítimas e de quem escapou das chuvas em SP

    LEANDRO MACHADO
    DE SÃO PAULO

    19/03/2016 02h00

    Iluminando o terreno com um celular, o aposentado Onório Oliveira, 51, desce o barranco. Ali perdeu dois filhos quando a terra desabou na sua casa. Ele aponta para o chão e encontra um par de sandálias sujo de lama seca. "É da Sandrinha, é da minha filha", grita, sorrindo.

    Ao ver as sandálias, a mulher de Onório, a costureira Auderi Paulino, 51, começa a chorar. "Minha filhinha, tão trabalhadeira", diz, abraçando uma das duas camisetas que confeccionou com imagens dos filhos mortos.

    Jorge, 18, e Sandra Oliveira, 26, de Francisco Morato, morreram às 23h26 do último dia 10, quando uma forte chuva matou 23 pessoas na Grande SP –e outras duas no interior. Nos últimos dias, a reportagem da Folha conseguiu conversar com parentes e amigos de 14 das vítimas.

    Sandra era analista financeira. Jorge havia sido demitido do restaurante do McDonald's em que trabalhava, na Lapa, zona oeste –estava para receber a terceira parcela do seguro-desemprego.

    "Eu havia ido beber água na cozinha. Só sobrevivi por isso", conta Joel Oliveira, 18, irmão gêmeo de Jorge.

    Quem apresentou a família à Folha foi o agente funerário Cristiano Avelino, 43, que participou do sepultamento das oito vítimas de Francisco Morato.

    Ele trabalha há 28 anos com enterros e já se acostumou a levar vítimas da chuva na cidade onde nasceu. O município é cheio de morros e tem parte da sua população vivendo em áreas de risco.

    Avelino ergue o dedo e aponta: "Naquele barranco já morreram dois, há três anos. Tá vendo aquele terreno? Tem uns dez anos que morreram outros três, num deslizamento". Dessa vez, ele enterrou vários conhecidos. O garoto Jorge, por exemplo, cresceu brincando com seu filho.

    Na frente da casa emprestada por amigos para a família viver, Onório conta que encontrou uma carteira da filha Sandra nos escombros. Dentro, havia uma foto dele com uma frase escrita: "Você é o melhor pai do mundo. Sempre tente dar um sorriso, pai".

    Com as sandálias da filha morta nas mãos, ele afirma: "Meu amigo, quando li isso, minha cabeça diminuiu. Meu coração aumentou assim, ó. Agora você entende porque sempre estou sorrindo?"

    Como acontecem os deslizamentos

    DE CABEÇA BAIXA

    No mesmo bairro, o agente funerário Cristiano estaciona em frente ao mercado onde trabalhava o açougueiro Alexandre Donizete Ferreira, 43. Ele e a mulher, Flavia Costa, 34, também morreram em um deslizamento.

    Alê, como era conhecido, trabalhou por mais de dez anos ali. "Entrou quando ainda era uma quitanda", conta um colega. Quando a lojinha cresceu, foi cortar as carnes. "Ele gostava de fazer churrasco, era tranquilão", afirma.

    Quatro dias depois do desabamento, o filho do casal, de 16 anos, assumiu o lugar do pai no mercado –com pena, os donos contrataram o adolescente. Muito triste, ele não quis dar entrevista. "Anda sempre com a cabeça baixa", relata outro funcionário.

    O HOMEM MAIS TRISTE

    Em Mairiporã, cidade ao lado de Francisco Morato, o parque Náutico –um morro lotado de casas em barrancos– virou cenário da mesma tragédia: dez pessoas de duas famílias morreram em um deslizamento.

    O entregador de gás Jefferson Donizeti Freitas, 38, perdeu a mulher, Fabiana Moraes, 28, e as filhas Ana Luiza, 7, e Anna Laura, de 11 meses. "A gente tinha acabado de jantar. Eu disse para minha mulher: 'Vai indo para o quarto para dormir com as crianças que eu vou ao banheiro'".

    Elas foram e morreram quando o barranco desabou. Jefferson ficou por três horas soterrado, mas sobreviveu. Ficou cheio de hematomas.

    Na casa ao lado, morava a família do comerciante Cristiano França. Ele perdeu sete parentes: a mulher, três filhos, uma sobrinha, o pai e a mãe. "Você deve imaginar como ele está. Hoje ele é o homem mais triste do mundo", diz uma vizinha e amiga.

    A família de Cristiano tinha se mudado para Mairiporã em dezembro, vinda do Guarujá. Moravam no morro provisoriamente, enquanto finalizavam a construção da casa própria. Queriam mudar de vida após fecharem a padaria que tocavam no litoral.

    As obras da nova casa tinham acabado e eles iriam se mudar na terça (14), cinco dias depois da tragédia. A chuva veio antes.


    Colaborou GIBA BERGAMIM JR., de São Paulo

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