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    Dilma sanciona lei que autoriza uso da "pílula do câncer"

    NATÁLIA CANCIAN
    DE BRASÍLIA
    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    14/04/2016 02h00

    A presidente Dilma Rousseff sancionou nesta quinta-feira (14) o projeto de lei aprovado no Congresso que permite a produção, a distribuição e o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como "pílula do câncer".

    A medida autoriza pessoas com câncer a utilizarem a substância "por livre escolha", desde que apresentem laudo médico com a comprovação do diagnóstico e assinem termo de consentimento e responsabilidade.

    A nova lei também autoriza a produção, importação, distribuição, prescrição e uso da fosfoetanolamina, "em caráter excepcional", ainda que a substância não tenha registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

    A liberação foi publicada no "Diário Oficial da União". A decisão ocorre mesmo após pareceres contrários do Ministério da Saúde, da Ciência e Tecnologia e da própria Anvisa, entre outros órgãos, que temem riscos à saúde dos pacientes com a sanção da nova lei.

    O principal impasse é que a substância, embora tenha sido desenvolvida há 20 anos, nunca passou por estudos clínicos que comprovem sua segurança e eficácia.

    Além disso, os primeiros resultados de testes independentes feitos com a pílula, divulgados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, não foram bons. Segundo as análises, ela teve desempenho muito inferior ao de drogas anticâncer já disponíveis há décadas.

    SEM VETOS

    A iniciativa de sancionar o projeto já havia sido indicada à presidente após reunião na Casa Civil na quarta-feira (13).

    Inicialmente, no entanto, a ideia era que fosse vetado apenas um artigo, que trata o uso da fosfoetanolamina como de "relevância pública". O trecho foi mantido.

    A forte pressão de pacientes e do Congresso pesaram na decisão por sancionar o texto integralmente. A avaliação é que o veto total ao projeto, como era a recomendação de alguns ministérios, poderia trazer maior desgaste à presidente, a três dias da votação do impeachment na Câmara dos Deputados.

    Em meio ao impasse, o governo pretende que seja criado um grupo de trabalho não apenas para monitoramento do resultado das pesquisas, financiadas pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e Saúde, como também para discutir regras para distribuição e uso da fosfoetanolamina.

    A liberação da substância ocorre apenas até que os estudos clínicos sejam finalizados.

    A lei diz ainda que a produção, importação, distribuição e prescrição somente serão permitidas para agentes autorizados pelos órgãos de controle, como a Anvisa.

    REPERCUSSÃO

    Para Gustavo dos Santos Fernandes, presidente da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), a lei sancionada por Dilma terá um efeito desastroso sobre os testes controlados da fosfoetanolamina em pacientes humanos - o governo estadual de São Paulo tem planos de iniciá-los em breve.

    "Esses testes não vão ser feitos. Quem é que vai ter paciência de participar de um protocolo controlado, com todas as exigências, sabendo que a pílula estará disponível na farmácia da esquina?", questiona. Ele aponta ainda que há questões muito básicas a respeito do uso rotineiro que não estão resolvidas.

    "Qual é a dose diária e a posologia? Tem interação com algum outro medicamento? Alguma restrição por categoria de paciente? A gente não faz a menor ideia", diz Fernandes. "Se o paciente passar mal, ele reclama com quem? Com o deputado e o senador?"

    De acordo com o médico, o precedente perigoso criado pela liberação é o de uma espécie de "cotas para remédios sem comprovação científica", que poderiam ser aprovados para uso no país a toque de caixa, seguindo o mesmo modelo da "fosfo".

    "Que barbárie", lamentou a bioquímica Helena Nader, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), ao comentar a liberação da pílula. "A SBPC sente muito que a ciência não tenha sido ouvida. Nesse caso, foram rasgados todos os protocolos internacionais. Estamos indo contra tudo o que se preconiza hoje no que deveria ser um país moderno, na era da economia do conhecimento."

    Nader disse que a intenção da sociedade é contestar a nova legislação, embora as estratégias sobre como fazer isso ainda precisem ser traçadas. "Eu entendo o desespero de quem tem um tumor, já tive pessoas muito próximas, familiares e amigos, nessa situação. Mas, como cientistas, temos de proteger o ser humano, essa é a nossa função principal."

    PESQUISAS EM ANDAMENTO

    Durvanei Augusto Maria, pesquisador do Instituto Butantan que é coautor dos poucos estudos publicados até hoje sobre a ação da fosfoetanolamina em culturas de células e animais de laboratório, diz que a liberação é um alento para que ele e seus colegas continuem a estudar os mecanismos de ação da substância em diferentes tipos de câncer.

    "Queremos entender, por exemplo, como a fosfo age em tumores cuja resposta à quimioterapia é baixa, como carcinomas da cavidade oral. Também vamos investigar os mecanismos pelos quais a substância inibe a proliferação das células tumorais e desencadeia a apoptose [morte celular] delas. Em alguns casos esse mecanismo parece ser muito particular", afirma ele.

    Apesar da falta de conhecimento científico sobre todos esses detalhes, ele diz não considerar a liberação algo prematuro. "Não encaro como liberação, mas como regulação. Entendemos que as etapas necessárias precisam ser seguidas, mas sem morosidade." Para ele, a nova lei não atrapalhará os testes clínicos controlados. "O governo pode usar esse novo cenário inclusive como estratégia para credenciar os pacientes e recrutá-los para os testes clínicos."

    A Folha questionou a USP, que fez uma representação criminal contra o químico Gilberto Chierice por curandeirismo, sobre a legislação que entrou em vigor. A universidade informou que reiterava sua nota oficial do dia 1º de abril deste ano, na qual afirma que não pode produzir a molécula independentemente, já que a patente dela pertence aos pesquisadores, e que, de qualquer modo, não teria condições de fazê-lo em larga escala. A reportagem não conseguiu localizar Chierice.

    Remédio anticâncer

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