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    Polícia de SP ignorou provas, e jovens foram enterrados como ladrões

    ROGÉRIO PAGNAN
    DE SÃO PAULO

    02/05/2016 02h00

    Jorge Araujo - 27.abr.2016/Folhapress
    Josefa Siqueira, 64, com foto do sobrinho Douglas, 16, uma das quatro vítimas de chacina
    Josefa Siqueira, 64, com foto do sobrinho Douglas, 16, uma das quatro vítimas de chacina

    Dallas é uma pequena rua do Parque Sampaio Viana, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Por lá, os moradores não conseguiram superar o assassinato de quatro adolescentes entregadores de pizza, em setembro de 2015.

    Tampouco se conformaram com a polícia, que tratou os quatro rapazes, todos caçulas de suas famílias, como se fossem criminosos.

    "Dá uma revolta muito grande. Eles não eram nada disso [bandidos]. Eram crianças respeitadoras. Os quatro", diz Josefa Lima Siqueira, 64, tia de Douglas Basto Vieira, 16, uma das vítimas.

    "Inventaram essa história porque os meninos estão mortos e não podem mais se defender. Mas eles têm familiares que estão lutando até hoje para mostrar que isso não aconteceu", afirma Luiz Carlos dos Santos, 27, irmão de Matheus, outra vítima da chacina, também de 16 anos.

    As quatro famílias têm razão para indignação, segundo documentos obtidos pela Folha. Eles mostram que as vítimas, depois da chacina, foram apontadas como suspeitas de um crime que a polícia já sabia ter sido cometido por outras pessoas.

    Jorge Araujo - 27.abr.2016/Folhapress
    Luiz Carlos dos Santos com a foto do irmão, Matheus, 16, outra vítima; crime ocorreu em setembro na Grande SP
    Luiz Carlos dos Santos com a foto do irmão, Matheus, 16, outra vítima; crime ocorreu em setembro

    Os rapazes foram assassinados a tiros em 19 de setembro, ao lado da pizzaria onde trabalhavam. Cinco dias depois, no dia 24, o secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes, declarou que o eixo da apuração da chacina estava concluído.

    Tratava-se de uma vingança, segundo ele: o policial militar Douglas Gomes Medeiros, preso naquele momento, matou os jovens porque eles haviam roubado a bolsa da mulher dele dias antes.

    A principal prova, pela versão oficial, era que a bolsa fora encontrada na casa de um dos jovens mortos.

    Essa versão foi reproduzida em nota oficial à imprensa divulgada pela gestão de Geraldo Alckmin (PSDB).

    Os documentos, porém, revelam que nada disso ocorreu. A bolsa da mulher do PM foi de fato encontrada, mas a mais de quatro quilômetros da rua Dallas e com pessoas sem ligação com as vítimas.

    Ela foi achada por acaso, em uma blitz policial na casa de suspeitos de roubos, em 11 de setembro, oito dias antes da chacina dos meninos. Estava em meio a drogas, armas e uma moto roubada.

    Um adolescente apreendido na operação disse aos policiais que a bolsa havia sido roubada por dois conhecidos, "Matheus" e "Júnior".

    Jorge Araujo - 27.abr.2016/Folhapress
    Os quatro rapazes assassinados em Carapicuíba
    Os quatro rapazes assassinados em Carapicuíba

    POLÍCIA OMITIU

    Tanto o adolescente quanto "Matheus", localizado depois pela polícia, disseram em depoimento em setembro –e diante de fotos apresentadas– que nunca tinham visto as vítimas da chacina.

    Mas a Polícia Civil omitiu isso quando o policial foi preso como o autor da chacina. Assim, foi possível sustentar a versão de que o PM matara os meninos como vingança.

    Com o avanço do processo, porém, essas informações vieram à tona e a principal linha de investigação da polícia deixou de fazer sentido.

    Se os quatro não roubaram a mulher do policial militar, por que ele iria matá-los?

    A essa dúvida somaram-se contradições de testemunhas de acusação, o que levou o Ministério Público a concluir que as provas eram insuficientes para manter as acusações contra o policial.

    "Os indícios iniciais que permitiram o oferecimento de denúncia e a decretação da prisão do réu não se confirmaram", disse à Folha a promotora Sandra Reimberg.

    "Houve forte questionamento sobre idoneidade de algumas testemunhas e apresentação de álibi pelo réu. A falta de testemunhas presenciais e de apreensão de arma do crime ou outros objetos relacionados contribuíram" para a decisão de não manter as acusações, diz a promotora.

    O álibi do PM foi uma vizinha, que afirmou ter ouvido a voz dele e da mulher no mesmo momento da chacina.

    A Justiça concordou com a promotora e, assim, determinou a liberação do policial.

    ESTACA ZERO

    Com essa decisão, volta à estaca zero a tentativa de descobrir quem matou os quatro adolescentes. Só fatos novos podem levar a polícia a reabrir as investigações.

    A Polícia Civil informou que "relatou o inquérito com as provas suficientes para o oferecimento e recebimento da denúncia pela Justiça".

    É uma resposta que não serve para Ivanilda da Costa, 40, mãe de outra das vítimas, José Carlos Costa do Nascimento, 17, o Lapixó.

    "Pedi a Deus para me deixar viva só até eu ver a pessoa que fez isso com meu filho pagar pelo crime. Depois, pode me levar. Não tem mais graça viver", disse ela na quarta (27), dia em que o filho completaria 18 anos.

    "Espero que o secretário [Moraes] venha nos pedir desculpas pelo o que disse", afirma o vigilante Juarez Sabino de Souza, pai de Carlos Eduardo de Souza, o Cadu, 18, a quarta vítima.

    OUTRO LADO

    Procurado ao longo da semana passada pela reportagem da Folha, o secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes, não quis comentar o assunto.

    A reportagem enviou à assessoria de imprensa da secretaria as seguintes questões: 1) Quem informou ao secretário sobre localização da bolsa da mulher do PM; 2) Quem disse que a bolsa tinha sido encontrada na casa de um dos meninos assassinados da pizzaria?

    A Secretaria da Segurança não informou ainda se vai determinar a reabertura das investigações da chacina.

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