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    Cliente e empresa trocam poemas sobre reclamação em conta de água

    MARINA ESTARQUE
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    26/05/2016 02h00

    Como dizia o poeta Castro Alves, livro caindo na alma é chuva que faz o mar. Na alma da funcionária Aline Santos, o poema do cliente Luiz Carlos Garcia, 64, também fez desaguar: as lágrimas.

    A carta de Garcia, com 160 versos rimados, era uma reclamação por cobranças indevidas à Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal, a Caesb.

    Alan Marques/Folhapress
    BRASÍLIA, DF, BRASIL, 25.05.2016. Luiz Carlos Garcia mora sozinho e passou a receber contas de água de mais de mil reais. Trocou os canos de casa, para evitar vazamentos, mas a conta continuou alta. Decidiu escrever um poema, direcionado ao presidente da Caesb (empresa de saneamento), descrevendo o problema. A empresa resolveu a falha e uma funcionária respondeu ao cliente também com uma poesia. (FOTO Alan Marques/ Folhapress) COTIDIANO *** ESPECIAL ***
    Luiz Carlos Garcia, que recebeu contas de água abusivas e fez reclamação em forma de poema

    Apesar de morar sozinho em uma casa em Brasília, o valor da conta mensal de água de Garcia atingiu R$ 1.150. Em vez de um telefonema raivoso ou de um e-mail malcriado, Garcia, que é consultor de projetos, escreveu: "O hidrômetro que marca e conta/a água que aqui consumo/é como fumaça que espalha/de um cigarro que não fumo."

    Inspirado nos versos de Castro Alves, um dos seus escritores preferidos, e também na Terceira Lei de Newton (da ação e reação), Garcia quis fazer a queixa da forma mais "gentil e delicada" que podia. "Se você trata o outro com respeito e dignidade, é isso que você recebe de volta. É uma questão de posicionamento na vida", justifica.

    CONSUMO MODESTO

    Ao longo do texto, Garcia conta que mora sozinho, faz um consumo modesto do serviço e, mesmo assim, a cobrança teria sido muito alta. "Nem para beber uso água/que da rede aqui deságua/das minerais me abasteço/e disso não guardo mágoa."

    Garcia descreve também que fizera uma obra para trocar o encanamento da casa e corrigir eventuais vazamentos. Entretanto, depois da reforma, a conta continuava muito superior à dos vizinhos.

    Ele aponta então o responsável pelas falhas, "mui" respeitosamente: "A Caesb é empresa séria/não há dúvidas que eu levante então nessa minha história/o hidrômetro é o meliante". A carta, endereçada ao presidente da companhia, foi protocolada em março. Um dia depois, o cliente recebeu uma ligação do vice-presidente, que prometeu investigar o caso.

    Passado cerca de um mês, a carta chegou às mãos de Aline Santos, 46, encarregada de redigir uma resposta à altura. A empresa havia identificado um vazamento na rede e pretendia devolver, por meio de descontos, o valor já pago pelo "consultor poeta".

    Assim que leu o poema, na frente dos outros funcionários, Aline começou a chorar. "Todo mundo riu, eu sou frouxa mesmo", diz. Além de supervisora do escritório de atendimento ao cliente, ela é formada em letras e apaixonada por poesia. É conhecida na empresa por cobrar da equipe o uso correto da língua portuguesa.

    ATÍPICO

    "O poema foi algo totalmente atípico. Me tocou porque me senti respeitada como empregada e como pessoa. Geralmente o que a gente encontra aqui é o extremo oposto. As pessoas quando vêm reclamar já chegam com pedras nas mãos", conta.

    Aline levou o texto de Garcia para casa e elaborou outro poema, como réplica oficial da empresa. "Vimos pelo presente documento/Apresentar os resultados apurados/Na esperança de que com esse intento/Encerremos seus desagrados."

    A funcionária da companhia diz que costuma escrever prosa –contos que ainda não saíram da gaveta–, e não poemas, mas que se esforçou para manter o estilo de Garcia. "E eis que ficou constatado/A ocorrência de um vazamento/Comprovadamente sanado/No mais curto espaço de tempo", prosseguiu.

    "Quis fazer uma homenagem. Ele humanizou uma relação comercial, e isso é fantástico", diz a supervisora. Garcia ficou surpreso com a resposta –"Uma gentileza maravilhosa"– e com as contas dos meses seguintes. Os valores caíram drasticamente até atingir R$ 127.

    Ele aconselha: "Quando você tem um problema e a solução depende dos dois, é melhor tratar o outro como fonte de ajuda, e não como um obstáculo". Com a conta de água em seu preço justo e o desperdício interrompido, o consumidor poeta se permite um trocadilho: "A história desaguou em um final feliz".

    *

    Confira abaixo a troca de poemas.

    Poema do cliente para a empresa

    Senhor Presidente
    Venho mui respeitosamente à presença de vossa senhoria para apresentar e requerer o que se segue:

    Venho à vossa senhoria
    externar o que me aborrece
    se não pode perseverar
    aquilo que me entristece

    O hidrômetro que marca e conta
    a água que aqui consumo
    é como fumaça que espalha
    de um cigarro que não fumo

    Desde que foi instalado
    o novo tecnológico instrumento
    a cada leitura nele feito
    perco até os movimentos

    Preocupado com a conta
    que sempre me mostra aumento
    até contratei uma empresa
    que se diz caça-vazamento

    Na verdade o que queria
    na lucidez do momento
    era encontrar uma forma
    para estancar o tormento

    E um trabalho dedicado
    puseram-se os homens a fazer
    na busca de saber se o indicado
    eles poderiam resolver

    Depois de muito procurar
    em canos, válvulas e torneiras
    disseram-me algo encontrar
    que explicasse d'água a peneira

    Puseram-se então a falar
    na rede, este trecho é o problema
    se os canos daqui, for trocar
    resolvemos o seu dilema

    Cem metros de cano comprei
    cola, lixa e conexões
    depressa do comércio voltei
    atendendo as orientações

    Fizeram toda tarefa
    da rede modificar
    depois foram-se embora
    p'ra outras casas visitar

    Grande foi a minha surpresa
    que nem sei como contar
    fui consultar o hidrômetro
    e ver o que ele estava a marcar

    Quando o olhei atentamente
    com tudo na casa fechado
    lá estava o renitente
    a se mover, desesperado

    Acreditar? já não podia
    naquilo que ali, eu via
    restou-me naquela agonia
    me apegar n'alguma magia

    Aqui moro sozinho
    sem filhos, mulher, empregado
    não lavo roupas, nem cozinho
    só no banho, o líquido é usado

    Nem para beber uso água
    que da rede aqui deságua
    das minerais me abasteço
    e disso não guardo mágoa

    Também não recebo visitas
    que a água pudessem consumir
    por isso procurar respostas
    é no que preciso insistir

    Minha casa é bem pequena
    apenas cem metros quadrados
    nela só faço dormir
    e preservar meus guardados

    Não levo os jardins a regar
    nem carros eu deixo lavar
    calçadas com a água esfregar
    por onde esta água escoar?

    Faxino a casa com balde
    e um pano p'ra no chão passar
    diz minha consciência em alarde
    a água é p'ra se economizar

    Uma coisa é verdade
    que aqui preciso indagar
    como pode uma só pessoa
    tanta água no mês gastar?

    Um mistério se formou
    se esta água aqui entrou
    se dela pouco se usou
    a maior parte evaporou?

    A vários vizinhos perguntei
    e a pessoas que conheço:
    da água que consomem por mês
    na conta vem qual o preço?

    Quando minha conta os mostrei
    consternação demonstraram
    _ao sentir o quanto assuste,_
    procure a Caesb, falaram

    Até mesmo em casas grandes
    de famílias numerosas
    os valores lançados nas contas
    não são de montas onerosas

    Em outros tempos diria
    quando a rede era antiga
    mesmo achando água cara
    a conta era bem mais amiga

    Depois dessa rede mudada
    p'ra outra que diferença não vi
    me chega a conta inusitada
    a cobrar o que não consumi

    Recibos passados eu junto
    para sustentar o que escrevo
    pois como um bom cidadão
    sempre pago o que devo

    A Caesb é empresa séria
    não há dúvidas que eu levante
    então nesta minha história
    o hidrômetro é o meliante

    Sei que não posso acusar
    se provas me estão a faltar
    mais se a suspeição está no ar
    é preciso investigar

    Peço a vossa senhoria
    que mande me socorrer
    pois se a conta assim ficar
    de infarto posso morrer

    Com licença, peço aos peritos
    dessa Companhia honrada
    para o indivíduo estudar
    e esta situação aclarar

    Com suas técnicas e instrumentos
    sobre o dito cujo, aplicados
    saberemos se seu trabalho
    é correto ou é viciado

    Se inocente estiver
    desculpas já devo pedir
    mais recolhido deverá ser
    se nele a culpa recair

    Se comprovado, o erro for
    de quem o consumo media
    devolva-me com prontidão
    o que paguei e não devia

    Ou se preferir modo outro
    proponho a vossa senhoria
    descontar o tal valor
    quando faturar a Companhia

    Pois se assim não for feito
    outro caminho não há
    se não o de ir a justiça
    o meu direito reclamar

    Rogo vossa senhoria
    uma providência tomar
    pois não é justo essa conta
    eu ter que continuar a pagar

    Assim, deixo o meu pedido
    em forma de poesia
    se escrever é uma arte
    que me enche de alegria

    E, antes que se faça tarde
    neste tempo, o que pronuncia
    antecipo meus agradecimentos
    junto a vossa senhoria

    Como nos ensina a lição
    que nos vem d'antigamente
    despeço-me no último verso
    com um gentil, cordialmente.

    Poema da funcionária da empresa para o cliente

    Sr. Luiz Carlos

    Em resposta à sua manifestação
    Sob o n.º 1.723/2016 protocolada
    Na qual nos chamou atenção
    O brilhante uso da nossa língua falada
    Vimos pelo presente documento
    Apresentar os resultados apurados
    Na esperança de que com esse intento
    Encerremos os seus desagrados

    A fim de verificar
    A situação apresentada
    Pusemo-nos a vistoriar
    As instalações internas afetadas
    E eis que ficou constatado
    A ocorrência de um vazamento
    Comprovadamente sanado
    No mais curto espaço de tempo

    Para assegurar um fornecimento
    Contínuo, lhano e escorreito
    Fora instalado um equipamento
    De precisão, em seu conceito
    E ao fim de 58h constantes
    Registrou o importante instrumento
    Não haver na rede pressões variantes
    Que provocassem um derramamento

    Desta forma, concluímos que o vazamento
    Ocorrido em sua residência
    Tratou-se de um fortuito acontecimento
    Lamentável em sua essência
    E, atendendo a Resolução da Adasa
    Que norteia os procedimentos desta Casa
    Foram concedidos os descontos possíveis
    Aos casos de vazamentos imperceptíveis

    Estão creditados para os próximos faturamentos
    Valores resultantes das revisões das contas
    Limitadas a dois consecutivos eventos
    Com prazo de 12 meses para nova remonta
    Mas sabendo dos hábitos conscientes
    Por V. Sª praticados
    Certamente não será recorrente
    O evento outrora cessado

    Pessoalmente quero aqui registrar
    Minha admiração e meu mais profundo respeito
    Posto que, lamentavelmente, não é comum encontrar
    Quem faz do uso da palavra um belo feito
    Compartilhando da mesma paixão
    Me despeço com leniência
    E digo com admiração
    Receba minha reverência

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