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    Que homens não calem ante violência contra mulher, diz membro da ONU

    JAIRO MARQUES
    DE SÃO PAULO

    29/05/2016 02h00

    Para a médica Nadine Gasman, 58, representante no Brasil da ONU Mulheres –entidade das Nações Unidas para a igualdade de gênero– não há exagero em afirmar que o país está convivendo com uma "cultura do estupro" e que é preciso combater atitudes como os assovios para mulheres nas ruas.

    Mestre em Saúde Pública pela Universidade Harvard e doutora em Gerenciamento e Políticas da Saúde pela Universidade Johns Hopkins, ambas nos EUA, Gasman tem nacionalidade mexicana e francesa e está na ONU desde 2005. Ela já dirigiu campanha pelo fim da violência contra as mulheres para a América Latina e o Caribe.

    Ela questionou a necessidade de uma nova estrutura, na Polícia Federal, anúncio feito pelo presidente interino Michel Temer, para apurar estupros. "O Brasil já tem os mecanismos efetivos para dar uma resposta às mulheres. A rede de atendimento pode ser aprimorada, mas é necessário analisar bem se é preciso adicionar um novo serviço", diz.

    Leo Martins - 26.jun.2015/Agência O Globo
    A médica Nadine Gasman, 58, representante da ONU Mulheres no Brasil
    A médica Nadine Gasman, 58, representante da ONU Mulheres no Brasil

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    Folha - As redes sociais proclamam repúdio à "cultura do estupro" no Brasil. O conceito sobre o país está adequado?
    Nadine Gasman - Diante do que temos visto atualmente, sim. Ter a notificação de 50 mil estupros por ano no país também leva a esta conclusão. Parte da sociedade está reagindo, está empenhada em defender os direitos das mulheres, a igualdade de gênero e o empoderamento da mulher. Mas existe outra parte, machista e sexista, que continua achando que os corpos das mulheres estão aí para serem tomados, dando força à cultura do estupro.

    A Presidência manifestou repúdio ao crime do Rio e anunciou nova estrutura de segurança. A questão é investigação, proteção?
    O que precisamos são ações em todos os âmbitos: na cultura, na educação, na escola, na família. Temos é que reforçar o programa brasileiro chamado Mulher, Viver sem Violência, que visa a construção de uma sociedade que tenha zero tolerância à violência contra a mulher. É importante ter leis, políticas e uma rede de atendimento que dê uma resposta humanizada e efetiva às vítimas. Uma mulher estuprada precisa de, nas primeiras horas após o ocorrido, acesso a anticoncepcionais de emergência, medicamentos para prevenir doenças sexuais, apoio psicológico, social e jurídico.
    O Brasil já tem os mecanismos efetivos para dar uma resposta às mulheres. A rede de atendimento pode ser aprimorada, mas é necessário analisar bem se é preciso adicionar um novo serviço.

    Que fatores motivariam casos perversos como o do Rio?
    A existência de uma cultura machista no ambiente, somada à questão de uma gangue que achava que a violência contra uma menina era parte da festa, sem que nenhum deles tenha se manifestado contra o ato, dá a ideia de um desprezo profundo de 33 homens à vida e ao corpo de uma garota.
    Pensar que se é mais homem com agressividade, que as mulheres existem para que ele faça delas o que quer é a questão por trás disso tudo. Ainda há a mentalidade de que o homem é mais importante, tem mais direitos. Dessa forma, as campanhas de conscientização atuais estão fazendo o chamado voltado ao homem. Primeiro para que eles não se calem diante de um ato de violência contra a mulher, que tenham o compromisso pessoal de impedir estas situações, que usem os espaços sociais que têm para mudar o pensamento dos outros. Temos de engajar o homem para trabalhar pela igualdade.

    A vulnerabilidade à violência é maior em algum perfil de mulher?
    É generalizada. Pesquisa recente da Actionaid [ONG global pelos direitos humanos] revelou que 86% das mulheres já foram assediadas na rua. Mas é claro que ter mais acesso à educação, mais autonomia econômica, uma rede de apoio à disposição diminui os riscos. Então, as políticas públicas precisam garantir que qualquer mulher, em qualquer situação sinta que está empoderada.

    Aparatos tecnológicos de troca de imagens e vídeos contribuem com o aumento da violência contra a mulher?
    A ciberviolência, difundida pela internet e pelas mídias sociais, é uma questão gravíssima e é um crime. Pensar que esse caso ocorrido no Rio foi divulgado nas redes é um absurdo sem tamanho, mas é relevante lembrar que 800 pessoas denunciaram a postagem e a trataram como inaceitável.

    A representação mais igualitária da mulher em diversas esferas sociais também pode implicar violência?
    Sem dúvidas. A violência contra a mulher tem a ver com a forma como a sociedade divide o poder, os recursos, os preconceitos. Por mais que se tenha, como é o caso do Brasil, um movimento de mulheres forte, expressivo e atuante, os espaços de poder real da mulher, tanto em governos como em empresas, ainda é limitado.

    O medo de denunciar ainda é empecilho para punição?
    Isso está mudando bastante. O serviço Ligue 180 [canal gratuito para denúncias e orientações] tem sido um veículo muito importante para as mulheres terem mais informações sobre o que pode ser considerado violência, para terem com quem falar sobre suas situações e para fazerem denúncias. São 25 mil chamadas por dia. É muita gente falando do tema.

    Combater os assovios para a mulher na rua é necessário?
    Totalmente. Se 86% das mulheres dizem que são assediadas na rua, elas estão deixando de fazer atividade cotidianas e têm medo de estarem sozinhas. Que cidade se quer viver? Que país se quer construir? Esses comportamentos são formas de violência e fazem parte de uma cultura machista que acha que se pode mexer de maneira psicológica, física e sexual com uma mulher em local público. Na pesquisa da Actionaid, 8% das mulheres disseram ter sido estupradas em espaços públicos. Número enorme. Temos de falar contra todos os tipos de violência contra a mulher, desde o assédio na rua, no trabalho, em casa e até na política.

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