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    Análise

    História mostra por que tantas mulheres se calam sobre estupro

    CLÁUDIA COLLUCCI
    DE SÃO PAULO

    06/06/2016 02h00

    Desde os tempos mais antigos, o crime de estupro sempre figurou entre os mais graves, inclusive com previsão de pena de morte em várias legislações, como a germânica, a inglesa e a portuguesa.

    Mas a punição não era motivada por um sentimento de proteção à mulher. Funcionava como forma de cuidar de um bem, no caso a castidade, condição para o casamento.

    Na obra "História do estupro", Georges Vigarello afirma que o crime não era só contra a família da mulher estuprada, mas contra a sociedade, que já não podia mais contar com alguém digna para um bom casamento.

    Contudo, havia os arranjos. Na legislação hebraica, por exemplo, o homem que violasse uma mulher virgem, prometida em casamento, era condenado à morte. Porém, se a mulher não fosse prometida, o estuprador tinha que pagar "indenização" ao pai da vítima e casar-se com ela.

    No Brasil colônia, para que o estupro fosse considerado crime, a mulher tinha que ser virgem e, logo depois de violada, sair gritando pelas ruas, de preferência, falando o nome do criminoso.

    Considerada pouco confiável pela Igreja Católica, a mulher não tinha vez. Suas palavras valiam menos do que a do seu algoz. O receio era de que, para prejudicar "bons homens", pudessem levantar falsas acusações de estupro.

    Via-crucis depois do estupro

    O Código Criminal do Império, de 1830, previa como punição ao crime de estupro prisão de 3 a 12 anos. Mas havia uma condição para a aplicação da pena máxima: a mulher deveria ser "honesta". Não sendo, a pena caía pela metade. Também havia a possibilidade de o agressor casar-se com a vítima, o que o livraria da pena.

    Em 1890, no período republicano, o estupro era tido como um crime que atingia a "segurança da honra, honestidade das famílias e do ultraje público." Em 1940, foi enquadrado entre "os crimes contra os costumes". Ou seja, contra os valores da sociedade, não contra a mulher.

    Somente em 2009 é que o estupro passou a ser um crime contra a dignidade sexual. Faz apenas sete anos. É bem possível que os historiadores do futuro, ao analisarem como as vítimas de estupro eram tratadas no ano de 2016, concluam ter havido pouco avanço no decorrer dos últimos séculos.

    Não estarão de todo errados. A sociedade continua julgando a mulher como nos primórdios, pela vida sexual pregressa, pelos locais que ela frequenta, pelas roupas que ela usa, pela forma como reage diante da violação.

    No Brasil, muitos juízes ainda usam, de forma deturpada, o artigo 59 do Código Penal, onde o comportamento da vítima pode ser analisado, para julgar com mais rigor a conduta da vítima de estupro do que a do acusado.

    Em 2012, o Superior Tribunal de Justiça absolveu um homem acusado de estuprar três crianças de 12 anos porque elas "já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data".

    No Reino Unido, o histórico sexual da mulher não é admissível no tribunal, mas em outros países europeus a experiência sexual da vítima pode ser usada como evidência num caso de estupro.

    Diante disso, é compreensível que tantas mulheres se calem após o crime. No passado, o silêncio era a solução para evitar a exposição pública da perda da castidade.

    No presente, é uma forma de fugir do descaso e do constrangimento nas delegacias. E de enfrentar a dura possibilidade de nem a Justiça acreditar nelas.

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