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    OPINIÃO

    Haroldo da Gama Torres: A periferia ainda é aquela

    18/06/2016 02h00

    Recentemente, tive a oportunidade de conhecer Pau de Lima, distrito distante da periferia de Salvador. Revi a mesma cor ocre dos casarios mal construídos, como que empilhados uns sobre os outros; a aflitiva ausência do verde; a topografia sinuosa, a sugerir que muitos ali vivem em locais de risco; as dezenas de fios cruzando-se perigosamente entre os poucos postes mal instalados; e o olhar curioso dos passantes para o carro estrangeiro, arremetendo ladeira acima.

    De novidade, observei poucas crianças e muitos idosos na rua. Percebi maior presença de veículos, como os absurdos mototáxis. Notei a infraestrutura mais organizada, com melhor arruamento e vielas calçadas.

    Surpreendi-me positivamente com o impressionante equipamento de saúde CCVP (Complexo Comunitário Vida Plena), uma unidade docente-assistencial mantida pela Sociedade Hólon em parceria com a Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.

    Editoria de Arte/Folhapress

    E me agarrei ao sorriso franco das senhoras negras, que continuam achando a vida bela. Na Bahia, as pessoas conseguem rir com gosto, mesmo no sufoco.

    Entrevistamos a médica responsável pelo centro de saúde. Mulher notável, cumprindo com esperança a missão de ajudar a carregar este mundo nos ombros. Obrigado, dra. Eleonora. Sua narrativa sobre as condições sociais, porém, me pareceu trágica como sempre: adolescentes grávidas, tráfico de drogas, doenças infecciosas. Mas, à medida que o Brasil periférico avança, outras patologias emergem: obesidade, depressão, desemprego, juventude sem rumo.

    Saí de lá com a sensação que a periferia continua periferia, apesar da mudança experimentada pelo Brasil nas últimas décadas. A renda pode ter aumentado, as casas podem ter uma grande geladeira, mas a enorme desigualdade social ainda é exasperante. A sensação de violência parece maior. Muitas crianças de Pau de Lima, assim como de outros lugares do Brasil, não concluirão o ensino médio e não terão qualquer chance de obter um trabalho decente no século 21. O desemprego continuará galopante e sem solução. E a promessa de que o Estado será capaz de resgatar a dívida social torna-se agora uma absurda miragem, à luz das notícias de um endividamento público estratosférico e de governos sem rumo.

    No entanto, talvez o mais preocupante seja a percepção de que a periferia saiu do radar. É assunto latente, doloroso, do qual poucos falam.

    Embora a "ascensão" das classes C e D tenha sido bastante discutida nos últimos anos, o fato é que, mesmo com o eventual reaquecimento da economia, grande parte desse grupo continuará na periferia e de lá não sairá. As chances de mobilidade social ascendente seguirão limitadas enquanto as escolas forem de pior qualidade, o acesso ao mercado de trabalho continuar distante e precário e, principalmente, as diferentes esferas de poder continuarem a olhar para esses locais com um misto de medo, rejeição e desinteresse.

    Um contrassenso, dado que a periferia somos todos nós.

    HAROLDO DA GAMA TORRES é demógrafo e cofundador da Din4mo, consultoria especializada em negócios com impacto social

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