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    Barracos de rua viram 24 horas após 'lei do frio' de Fernando Haddad

    ARTUR RODRIGUES
    EMILIO SANT'ANNA
    DE SÃO PAULO

    26/06/2016 02h00

    Eduardo Anizelli/Folhapress
    Barracas de moradores de rua montadas em Santa Cecília, na região central de São Paulo
    Barracas de moradores de rua montadas em Santa Cecília, na região central de São Paulo

    "Arrasaram. Agora, o 'rapa' não vem mais expulsar a gente daqui", comemora Kelly Molina, 33, travesti, sentada do lado de fora de uma barraca de lona na praça 14 Bis, na Bela Vista, região central de São Paulo.

    Até pouco tempo atrás, equipes de zeladoria da prefeitura determinavam o desmonte até as 7h de barracas e cabanas feitas com plástico, papelão ou cobertores. Isso deixou de acontecer a partir de segunda-feira (20), de acordo com moradores de rua e com o que a Folha apurou.

    Agora as barracas são usadas como refúgio para o frio, 24 horas por dia, em lugares como o largo de Santa Cecília, as regiões da praça da Sé e do Pateo do Collegio, a avenida São João, entre outros. O número de barracas ainda é menor do que era em 2013. À época, 17 praças eram acampamentos permanentes, entre elas a da Sé e o largo São Francisco.

    A volta das moradias improvisadas ocorre após publicação de decreto no sábado (18), em que o prefeito Fernando Haddad (PT) proíbe a retirada de itens pessoais da população de rua. A "lei do frio" foi criada depois de críticas à GCM (Guarda Civil Metropolitana), por confiscar colchões e papelões em meio ao frio recorde na capital.

    Ao comentar o problema, Haddad falou em prevenir uma "favelização". Criticado, o prefeito se desculpou e anunciou o decreto. As regras admitem o uso de barracas na rua à noite, mas vetam "objetos que caracterizem estabelecimento permanente em local público, principalmente quando atrapalharem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás e barracas montadas durante o dia".

    A prefeitura nega que a fiscalização tenha sido interrompida. Na prática, no entanto, os sem-teto festejam o sumiço dos fiscais das ruas.

    A vizinhança de Kelly na 14 Bis é composta por ao menos dez moradias, entre iglus de lona e cabanas feitas com plástico preto. Moradora do local, Fabiana da Silva, 30, afirma que cansou de perder seus pertences durante as operações diárias de "limpeza" feitas por equipes da prefeitura.

    "Quando a gente via, nossas coisas já estavam no caminhão deles", diz. "Antes eles tiravam mesmo no frio, na chuva, se tivesse criança", acrescenta Fabiana. Para ela, o sossego da última semana não vai durar muito tempo. "Só estão dando um tempo por causa das eleições. Eles vão voltar."

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    PRIVACIDADE DA BARRACA

    Ressabiado, José Eduardo Ribeiro, 38, abre o zíper da barraca e coloca a cabeça para fora. Faz 12ºC, às 22h. Lá dentro, um colchonete, um PlayStation e uma TV sobre um banquinho. "Agora não dá pra falar, tio", afirma seu filho, J., 14, vidrado no videogame que diz ser "à bateria".

    Os dois já estão por ali, a praça Marechal Deodoro (região central),"há bastante tempo", mas foi somente na última semana que passaram a deixar o iglu montado 24 horas. "O rapa parece que deu um tempo", diz o fluminense de Nova Iguaçu, há quase 20 anos em São Paulo, mais de dez na rua. Pelo sim, pelo não, ele passa a maior parte dos dias dentro da barraca. "Eles não estão passando, mas vai que."

    José e o filho vivem de doações, mas não só. Por R$ 3 a unidade, ele vende aos ocupantes da praça -são ao menos cinco barracas e outros tantos que dormem sem cobertura alguma-, e a quem mais procurar, a "corote" ou "barrigudinha": meio litro de pinga em garrafa de plástico.

    A 350 metros de seu iglu, um casal está ainda mais desconfiado da "liberalização" da prefeitura. Na praça Olavo Bilac, Campos Elíseos, Luana Renata dos Santos, 40, se recupera da terceira pneumonia em uma barraca de lona. "Eu já estava doente e o rapa veio aqui e pegou tudo."

    Na praça 14 Bis, Kelly Molina, 33, travesti, é mais confiante. Na terça-feira (21), por volta das 14h, ela bebericava um vinho ao som de um animadíssimo forró eletrônico para espantar o frio. A privacidade das barracas, diz ela, é preferível à rigidez dos albergues -que permanecem com vagas sobressalentes. "Nos últimos dias, várias pessoas receberam doações de barracas aqui. Agora, poucas não têm um teto", afirma.

    Menos animados ficam moradores e comerciantes. Para Marcelo Manhães, presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SP, o avanço das barracas durante o dia é resultado de "medidas permissivas" e da falta de uma política pública consistente para a população que mora na rua. "Estamos vivendo uma crise de identidade sobre como tratar essas pessoas."

    Já Martim Sampaio, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, afirma que quem escolhe viver em uma metrópole como São Paulo tem de aprender a conviver com moradores de rua. "É claro que há degradação dos locais, mas o primeiro valor humano é a vida."

    OUTRO LADO

    A gestão Fernando Haddad (PT) nega que a fiscalização das barracas dos moradores de rua tenha sido interrompida. Segundo a prefeitura, "são recolhidos apenas materiais inservíveis, que prejudiquem o fluxo de pessoas, abandonados e/ou colocados de forma irregular em calçadas e ruas da capital paulista".

    A administração municipal afirma também que possui uma rede apta a receber os moradores de rua também durante o dia. "Além dos Centros de Acolhida, que nessa época do ano são ampliados, há nove Núcleos de Convivência, que atendem mais de 2.800 pessoas durante o dia, e cinco Centros de Referência Especializados para a População em Situação de Ruas (Centros Pop), onde há acesso a refeições, lavagem de roupa e banho", afirma o município, em nota.

    Para o período noturno, o município vem ampliando as vagas. Além dos 10 mil leitos fixos em albergues municipais, desde 16 de maio cerca de 2.000 vagas foram criadas.

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