Boina preta, coturno lustrado, espingarda calibre 12 na mão. Na sexta-feira (24), uma blitz próximo à entrada de São Caetano do Sul, no ABC, na divisa com a capital paulista, buscava carros com documentação irregular.

A fiscalização estava a cargo de homens treinados por instrutores da Polícia Federal e que se vangloriam por fotos exibidas em outdoors e por terem até canil especializado em ações anti-sequestro.

Os personagens não seriam estranhos em uma nova versão do filme "Tropa de Elite", que eternizou a fama do Bope, da PM do Rio. Mas são guardas municipais da Prefeitura de São Caetano do Sul.

A cidade brasileira com maior Índice de Desenvolvimento Humano e uma das maiores riquezas per capita do Estado mantém de maneira ostensiva em suas ruas guardas-civis com status não oficial de Polícia Militar.

Na última segunda (27), foram homens dessa equipe que participaram de uma ação suspeita que terminou com a morte do universitário Julio Cesar Alves Espinoza, 24, na zona leste de São Paulo.

Ao lado da Polícia Militar, eles fizeram uma perseguição ao carro do estudante, que acabou atingido por 16 tiros –sete vieram dos guardas.

O caso é investigado pela Corregedoria da instituição em São Caetano do Sul, assim como pela PM paulista.

DIREITOS HUMANOS

O efetivo da guarda da cidade do ABC equivale a um homem para cada 395 habitantes. Na capital paulista, é um para 1.962 moradores.

A instituição de São Caetano é tradicionalmente gerida por um PM da reserva. Tem ainda um estatuto próprio que atribui pontos para a avaliação profissional. O guarda que demonstrar assiduidade ganha três pontos. Quem for pontual, dois pontos. O item respeito aos direitos humanos dá direito a só meio ponto.

Em São Caetano, há relatos de prisões de ladrões de celulares, de pequenos traficantes e perseguições a pessoas com "comportamento suspeito". Todas elas realizadas por guardas-civis que, de acordo com a legislação, teriam como objetivo a proteção de bens, serviços e patrimônio público municipal.

O coronel da reserva da PM e ex-secretário Nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho diz que quando as guardas atuam como policiais militares acabam colocando suas vidas e a de terceiros em risco.

"[Guarda civil] não tem o preparo que a polícia tem. Havendo uma situação de risco, que foge do papel básico da guarda, que é o da prevenção, a PM deve ser avisada."

TERRITÓRIO

A distribuição de bases da guarda por São Caetano deixa clara a preocupação da segurança local com criminosos vindos de outras cidades.

Em um pequeno trecho, próximo à favela de Heliópolis, a maior da capital paulista, estão três bases monitoradas e com carros da guarda. No limite com São Paulo, moradores de Heliópolis relatam que é comum a atuação dos guardas de São Caetano nos dois lados da "fronteira". "Vira e mexe tem perseguição e eles passam por aqui", diz um deles, indicando uma ponte no limite dos municípios.

Em 2013, um carro da guarda entrou na favela de Heliópolis em busca de um carro que estava em alta velocidade e houve troca de tiros. Em 2009, uma estudante de 17 anos morreu ao ser atingida por uma bala disparada pela guarda de São Caetano do Sul na favela de Heliópolis.

Para José Vicente, a ação de guardas municipais em uma outra cidade foge da sua atribuição. "Qualquer funcionário público municipal tem a competência restrita ao município em que trabalha", diz. "Eles precisariam de um bom puxão de orelha."

A Guarda Civil de São Caetano negou pedido da Folha para uma entrevista sob a justificativa de que já se pronunciou sobre a morte do universitário nesta semana –quando disse que abriria uma sindicância para apurar a conduta dos funcionários.

Em nota, a instituição não comentou questionamentos específicos, se limitou apenas a dizer que atua dentro da legislação vigente –não explicou, por exemplo, se há recomendação oficial de entrar em municípios vizinhos em caso de perseguições.

A prefeitura local costuma exaltar os baixos índices de criminalidade do município. A taxa de homicídios por cem mil habitantes em 2015 foi de 3,3 em São Caetano do Sul, contra 8,5 na capital. A de roubos, 631 por cem mil, contra 1.336 na cidade de São Paulo.