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    Minha História

    Médica, 47

    Tem como sair disso, diz médica agredida dez anos pelo marido

    Depoimento a
    ESTEVÃO BERTONI
    DE SÃO PAULO

    09/07/2016 02h00

    RESUMO Quinze anos após ter tido um dedo quebrado pelo marido médico durante uma discussão no carro, a também médica, de 47 anos, ainda usa proteção na mão esquerda por causa das dores. Ela conseguiu sair de um casamento de dez anos marcado por violência física e psicológica. À Justiça o pai de seus dois filhos afirmou que ela não poderia provar a autoria das lesões registradas na polícia, e o processo não teve continuidade.

    Joel Silva/Folhapress
    A médica de 47 anos que foi agredida pelo então marido
    A médica de 47 anos que foi agredida pelo então marido

    *

    Na primeira vez, ele deixou marcas de quatro dedos no meu braço. Não achou que estava errado nem pediu desculpa. Pensei: "Será que falei algo que o deixou nervoso para ele me apertar com força?"

    Em 2001, no sétimo mês de gravidez do meu segundo filho, enquanto ele dirigia, ele bateu minha cabeça no vidro, arrancou meu cabelo e segurou minha mão. Como eu não cedia e continuava falando, forçou até quebrar meu dedo.

    Até hoje uso órtese [proteção para imobilizar a mão] para conter a dor na articulação. Fiquei engessada por um mês, tive sequelas, mas não perdi o movimento de pinça, porque sem isso eu teria a mão inutilizada, e preciso dela para cuidar dos pacientes.

    Somos médicos. Nos conhecemos no hospital em que trabalhávamos, nos casamos em 1997 e ficamos juntos por dez anos. Tivemos dois filhos.

    Ele era um cara culto. Sabia das notícias, de vinho, de comida. A mulher não pensa muito quando está apaixonada. Fica um pouco cega e só no decorrer do relacionamento percebe a falta de respeito. Mas era como se eu estivesse submetida à opinião dele. "Vamos jantar?" Vamos. "Então você vai comer esse prato aqui, porque é bom", dizia.

    Logo começaram as agressões psicológicas. Ridicularizava a roupa, o cabelo. "Mas você vai de jeans? Onde é o encontro de mendigos?" E não elogiava. Na hora do sexo, dizia: "Nem tira o sutiã porque seus peitos são feios".

    As agressões verbais apareciam em forma de brincadeira. Depois, cheguei a levar um soco no rosto. E ele sempre se escondeu na bebida.

    Ia jantar, tomava vinho. Era sempre a desculpa na minha cabeça: "Só é agressivo quando bebe". Tinha o período de disfarçar, de dar presente para não tornar tudo uma ruína, mas depois voltava a mesma coisa. Você vai se sentindo culpada e anulada.

    E descobre as traições. Na gravidez, recebi um telefonema do marido de uma auxiliar de enfermagem com quem ele saía. Entrei em trabalho de parto, fui para o hospital, e ele confessou como se fosse a coisa mais normal.

    Como ela trabalhava com ele, fui procurá-la. "Como vocês começaram a sair?" "A gente começou a se paquerar e quis se curtir", disse. Descobri que a cara de pau visitou meu primeiro filho na maternidade, anos antes. Como meu marido permitiu isso? Eu levei o carro numa empresa para colocar uma escuta e descobri outras traições.

    'TENHO QUE REAGIR'

    Depois que minha filha nasceu, ele me jogou de uma cadeira. Estava com uma presilha no cabelo que entrou na minha cabeça, e o sangue começou a escorrer. Enlouquecido, ele tentou me enforcar.

    Minha mãe, que sabia de tudo, me acompanhou no médico. Ela não interferia.

    Quando teve o enforcamento, o hospital não me deixou ir embora sem chamar a polícia. Fiz um BO, como fiz na vez da mão. Fiquei apreensiva. "Será que vão procurá-lo?"

    No IML, fui atendida pelo mesmo perito, que reconheceu minha mãe: "A sua filha, da próxima vez, chega aqui morta". Foi uma coisa tão forte ver a reação dela ao ouvir aquilo, de impotência, e o desespero nos olhos. Naquela hora, pensei: "Isso não pode continuar. Tenho que reagir".

    Levei cinco anos para criar uma consciência. Até que tive coragem de procurar o advogado, e o oficial de Justiça o tirou de casa em 48 horas.

    Ele nunca mais falou comigo, só pelo advogado, e continua me agredindo indiretamente pelos filhos. A filha não o visita mais. O menino, também adolescente, ainda tem contato.

    Meu pai morou nos EUA e chamou as crianças para ir à Disney. Ele não autorizou para agredir. Pensou nos filhos? Qual criança não quer ir à Disney? Entrei na Justiça por privação de lazer e cultura. E o juiz assinou o passaporte.

    Tenho 11 processos contra ele. O primeiro porque fiquei quatro anos sem pensão. Mudei meu padrão de vida. Cheguei a vender caixinhas de madeira pintadas para complementar a renda, cuidei de criança, dei aula de dança.

    O processo por agressão não teve continuidade. O advogado dele falou ao juiz: "Quem disse que foi ele que quebrou o dedo dela? Como prova?". Não tem testemunha.

    Não tive medo de voltar a me relacionar, mas aprendi a reconhecer os agressores. Teve um que nem namorei. Me casei de novo há quatro anos, graças a Deus sem agressão.

    Toda vez que lembro da cara da minha mãe, me emociono. Tem como sair disso. Pode levar um mês ou cinco anos. Conto isso porque quero que quem esteja no fundo do poço encontre uma saída.

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