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    Morta na onda de frio de SP, Fabíola, 32, queria liberdade ao deixar interior

    EMILIO SANT'ANNA
    ENVIADO ESPECIAL A SANTA BÁRBARA D'OESTE (SP)

    12/07/2016 02h00

    Aos 13 anos, Fabíola vive cercada de amigos. Filha de uma professora, suas notas estão entre as melhores da classe. Quando não está na escola, passa o tempo com o irmão mais velho andando de patins na frente de casa. A família mora em um sobrado simples, mas espaçoso, em Santa Bárbara D'Oeste, a 140 km da capital.

    Dezenove anos depois, Fabíola é o corpo de uma moradora de rua estendido sobre um pedaço de papelão na avenida Cruzeiro do Sul. Aos 32 anos, foi encontrada em frente à rodoviária do Tietê, em uma noite em que os termômetros chegaram a 7ºC, em Santana, na zona norte.

    Um mês após sua morte, o IML (Instituto Médico Legal) ainda não tem resposta para a causa do óbito. A Secretaria da Segurança Pública diz que "o prazo para emissão de laudos é de aproximadamente 30 dias, prorrogáveis conforme a necessidade de exames adicionais ou de acordo com a complexidade dos trabalhos".

    De concreto, por enquanto, só se sabe que Fabíola Alvino de Oliveira é uma entre os cinco sem-teto que perderam a vida nas ruas de SP em meio à onda de frio que atingiu a cidade no último mês. Após as mortes, a Promotoria anunciou que investigaria eventual omissão da gestão Fernando Haddad (PT).

    "Não aceito. Simplesmente não aceito que minha irmã tenha morrido dessa forma, na rua, de frio", desabafa Everaldo Alvino de Oliveira, 34.

    Dessas cinco pessoas, duas morreram por bronco-pneumonia e uma por infarto. Ainda falta outro atestado de óbito, assim como o de Fabíola.

    Médicos ouvidos pela Folha apontam que as duas principais causas de morte de pessoas expostas a baixas temperaturas por períodos prolongados são a pneumonia e a arritmia cardíaca.

    PRIMEIRA COMUNHÃO

    Aos 13, a menina de sorriso fácil é uma das mais altas da turma da sétima série da escola prof. Antonieta Ghizini Lenhare. De família católica, ela se prepara para a primeira comunhão. Com um vestido branco rendado e laço prendendo os cabelos cacheados, em breve irá comungar na igreja do bairro.

    Do início da adolescência na vizinhança simples do interior paulista ao fim da vida na zona norte da capital, o caminho foi longo e acidentado. Aos 14, Fabíola dá os primeiros sinais de que algo não vai bem. Sem aviso prévio, as drogas já fazem parte da vida da garota."Foi por essa época que começou a dar problema. Cansei de sentar com ela bem aqui e dizer que merecia uma vida melhor", diz uma das tias à Folha.

    Entre broncas e conselhos, a menina cresce cercada de atenção da família. "Tudo o que você imagina que um adolescente poderia ter, ela teve", afirma Everaldo.

    Aos 17, Fabíola passa a trabalhar em uma loja de paisagismo na sua cidade. Não está contente, tem a ânsia de conhecer o mundo. Saia rodada, rasteirinha, artesanato, o universo hippie a fascina.

    Não demora muito, deixa a casa da família em direção à estrada. "Ela foi embora com um namorado. Só deixou uma carta dizendo que aqui não era o lugar dela."

    Depois de alguns meses, ela telefona. Quando volta, traz um companheiro e um bebê de seis meses.

    Entre idas e vindas, complicações mais sérias começam a surgir. Em 2002, aos 18, seu nome aparece pela primeira vez em um jornal local. De acordo com a reportagem, uma tentativa de furto. O mesmo acontece dez anos depois, em 2012, em Campinas: porte de cocaína.

    Do tempo que ela passou em casa, o irmão guarda a recordação dos conflitos nascidos da "falta de regras". "Eles saíam falando que iam 'trampar.' Só que saíam cedo e voltavam drogados, bêbados, com a menina no colo", diz.

    A saída foi sempre a mesma: a estrada. Levou a filha. Voltou, deixou a criança com a avó, sumiu de novo. Vez por outra, telefonemas com o paradeiro. Belém, Fortaleza e Cuiabá, lembra o irmão.

    SÃO PAULO

    Aos 23, Fabíola é mãe de duas crianças. Aos 29, são três. Ao contrário dos dois mais velhos, a guarda do mais novo não ficou com a família –estaria adotado, seguindo o irmão. "São meu sangue. Quero cuidar deles, dos três."

    Aos 32, no Carnaval deste ano, pouco tempo depois de reaparecer, ela some de novo. No entanto, não vai sozinha, leva o filho do meio.

    São dois meses até Everaldo conseguir encontrá-la em São Paulo, embaixo do viaduto Santa Efigênia, com o menino. "Estava magra, debilitada, suja. E ela era linda, linda", repete, soluçando.

    A conselheira tutelar Lualinda Toledo, 36, recorda-se de ter recebido Everaldo em busca do sobrinho e da irmã e de como a encontraram. "Um dia antes a UBS do local enviou um comunicado sobre uma mulher com filho embaixo do viaduto", diz. O menino volta para casa. Fabíola, porém, quer ficar. O mesmo se repete no final de maio.

    Há pouco tempo, Fabíola foi atropelada. Passou uma semana internada. Dessa vez, o irmão a encontra no terminal Tietê, dormindo na rua. A conversa é rápida. "Vamos embora, a mãe quer te ver, os meninos querem te ver. Vamos te internar, cuidar de você." Mas Fabíola resiste. Pede para ele tomar conta dos meninos. "Ela saiu em uma viagem sem volta", diz Everaldo.

    Da próxima vez que recebe notícias da irmã, ela já está morta há dez dias. Aos 32, Fabíola está em um sepultura sem nome, na quadra 83 do cemitério de Vila Formosa.

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