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    Minha História

    NEON CUNHA, 44

    Transexual pede morte assistida se não puder mudar nome e gênero

    Depoimento a
    CHICO FELITTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    30/07/2016 02h00

    RESUMO A designer Neon Cunha, 44, entrou no começo do ano com ação judicial de retificação de registro civil. Quer que seu nome de batismo, Neumir, e o sexo masculino, que lhe foi atribuído, sejam trocados. Ela se recusa a ser diagnosticada com disforia de gênero, condição descrita pela medicina como desconforto com o gênero que é atribuído ao nascer. À Justiça, ela pede "o direito a uma morte assistida" caso seu pedido não seja atendido.

    Marlene Bergamo/Folhapress
    A designer Neon Cunha, 44
    A designer Neon Cunha, 44

    *

    Sabe o conto de fadas da mulher que dorme por anos? É assim que eu me sinto, uma mulher que dormiu 30 anos.

    Meus pais são de origem humilde do interior de Minas Gerais, viemos para São Bernardo [do Campo, no ABC] quando eu tinha um ano. Sou a terceira filha mais velha de um total de dez filhos e mais dois de criação. Meu pai era metalúrgico da Volkswagen e minha mãe era faxineira doméstica. Minha mãe conta que me reconheci menina com dois anos e meio de idade.

    Aos oito anos, os meninos começaram a me tratar com termos como "bichinha", "mulherzinha". Como eram tratamentos no feminino, não me incomodavam, até que meu irmão mais velho me explicou que não era legal e que um homem não poderia aceitar isso. Comecei a desenvolver um receio de falar em público, de estar com outras crianças, medo mesmo.

    Mas nem isso abalou minha certeza de que era uma menina. Numa ocasião, fui à escola com uma calça de tergal prateada, sem roupa íntima, e o zíper prendeu no pênis. Neste dia entendi da pior maneira, com a explicação e socorro do meu pai, que eu tinha um pênis.

    PRECONCEITO

    Nunca tive problema com meu rosto, meu corpo. Até o processo de colocar mama foi muito pensado. Minhas amigas disseram: "Não faça essa transição, você vai perder tudo o que conquistou na vida".

    Mesmo dentro do movimento LGBT já enfrentei preconceito. Disseram: "Mas você tem pênis? Então não é mulher". Eu sou uma mulher, tenho um corpo de uma mulher e esse corpo tem um pênis. Sou uma mulher com pênis. [Há casos de transexuais que conseguiram modificação dos documentos sem passar por cirurgia, mas todos tiveram de passar por diagnóstico médico; o processo leva de meses a dois anos.]

    Não vou passar por controle médico, me recuso a passar por um processo de patologização. Como eu vou ficar nua na frente de alguém para provar que eu sou eu. Eu não tenho essa disforia [não reconhecimento da genitália com que se nasce], nunca tive. Uma mulher pode nascer com um falo e não se incomodar com isso.

    Essa ação era o sonho do meu advogado, é a tese dele. Ele diz que é o último processo que vai pegar. Disseram que ele vai parar no Tribunal de Ética da OAB, mas ele peita. Ele pode ser proibido de advogar. Mas vou levar adiante.

    Trabalho há 34 anos na mesma instituição, a Prefeitura de São Bernardo do Campo, tenho uma equipe de três pessoas. Mas as conquistas não me garantiram conforto e equilíbrio emocional: sempre me sentia insatisfeita comigo mesma.

    ANGÚSTIA

    Em 2010 decidi que não suportaria mais viver representando um papel social imposto. Fiz uma viagem a Lisboa e procurei emprego lá. Meu chefe pediu que eu voltasse. Voltei e as angústias só se agravaram. Não me submeteria mais a tanto sofrimento.

    É um ato necessário. Essa população está sendo matada. As minhas melhores amigas todas morreram, por violência ou descaso. Não posso pensar em mim, tenho de pensar em quem está na precariedade. Quem está numa área rural, numa área quilombola. Eu poderia comprar o laudo.

    O que é a morte? É a não existência, é a ausência de vida. Do que adianta eu ser documentada? Sou uma morta-viva? A negação de direito à vida eu já tenho.

    A condição posta é essa: eu preciso ficar mendigando que os outros permitam que eu seja quem eu sou. Eu tenho 16 anos de consultório terapêutico. Eu converso sobre não querer ser patologizada. Eu não sou doente. Eu não tomo hormônio de jeito nenhum. Tomei por uns dois anos, mas é muito ruim, muito desconforto. Eu tenho que respeitar quem vai fazer, mas não é uma opção, é regra.

    Sou mais uma mulher lutando pelo direito à dignidade que todas nós merecemos e poucas têm acesso. Não há nada mais primário do que a garantia de dignidade, nem mesmo a vida.

    Não tenho medo da morte. Tenho medo de morrer sem dignidade. A morte assistida seria morrer com os meus queridos ao redor, saber que eu ia ser enterrada com o modelão que eu escolhesse.

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