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    DEPOIMENTO

    Perdi amigos devido a DSTs, diz soropositivo e ex-usuário de crack

    EMILIO SANT'ANNA
    DE SÃO PAULO

    10/08/2016 02h00

    Durante um ano, Cléber (nome fictício),32, se prostituiu para comprar crack. Havia chegado do interior, onde trabalhava e morava com a família.

    Aos poucos, o vício o levou para a rua. Passou a frequentar a cracolândia, na Luz, região central de São Paulo. Durante os últimos quatro anos vagou pelas ruas da região usando a droga.

    Em fevereiro deste ano, resolveu procurar ajuda. No Cratod (Centro de Referência em Álcool, Tabaco e outras Drogas) recebeu o diagnóstico: sífilis e HIV positivo. Ali, ele faz parte de um contingente de usuários de crack com as mesmas doenças, até dez vezes mais prevalente entre eles do que na população em geral. Hoje, "passo a passo" ele tenta reconstruir a vida.

    *

    Perdi muitos amigos assim, um esses dias... Ele tinha sífilis, estava sem tratar havia uns três anos, sem a visão do olho esquerdo. O coração aumentou de tamanho. Não aguentou. Ele estava usando muito crack. Dava um trago e tinha que usar a bombinha de asma. Acho que misturou as químicas. Morreu com 34 anos.

    Eu estava pior do que ele. Cheguei a pesar 45 kg. Meu normal é 62 kg, 63 kg. Drogas. Na hora que acabava, entrava na prostituição para conseguir mais. Pegava ainda mais doenças. Assim foi indo.

    O uso frequente de crack começou aqui, desde 2011, quando vim para São Paulo. Conheci alguém e vim com ele para cá. Quando cheguei vi que não era a mesma coisa. Ele foi para um lado e eu para o outro. Fui parar num albergue com todo o dinheiro que tinha comigo. Vergonha de admitir para a família que tinha dado errado. Meus irmãos todos formados.

    Antes eu trabalhava, tinha vida social. Morava com meus pais, ganhava de R$ 1.700 a R$ 2.500 por mês. Com a droga minha vida congelou. Prostituição... foram muitas vezes. O ano de 2011 "todinho". Na praça da República, ali era o meu point. Trabalhava com telemarketing e fazia programa. Ganhava R$ 1.500 por semana.

    Isso naquela época. Hoje, quem ganha R$ 500 na rua é muito. Por R$ 10 a pessoa sai com outra, para comprar droga. Ninguém mais se prostitui por luxo. Só quem vai para fora do Brasil. Nos lugares de fluxo, Luz, República, só se prostitui para comprar droga mesmo, para ter o prazer de usar.

    Para HIV - Em %

    Para sífilis - Em %

    CLIENTELA

    Na época que eu fazia, tinha dez [clientes] fixos. Toda semana saía com esses dez, fora os que apareciam nesse meio tempo. Ligavam, diziam que tinham me visto no meu site. Outros, que alguém tinha me indicado para eles.

    Hoje estou sem ninguém. Pretendo continuar assim por mais algum tempo. É como eu falo aqui para o pessoal: estou vivendo o meu tempo.

    Os exames deram bons resultados. Estou reagindo bem à medicação, não tomo psicotrópicos para ansiedade, esses negócios, sabe? Consigo ter controle, posso ver alguém usar na minha frente e não ter vontade... Tô de boa.

    Estou vindo assim desde fevereiro, quando tive uma internação de 15 dias. Saí e vim direto para o Caps [Centro de Atenção Psicossocial]. Aqui ainda tive umas recaídas, na maconha, mas foi coisa leve.

    Já cheguei a usar umas 30 pedras por dia. Às vezes, 40. Aí já não estava mais me prostituindo. Era morador de rua. Com R$ 2 você fuma uma pedra [na cracolândia]. Eles cortam um pedaço e te vendem. Aí você fica na abstinência, na fissura de querer mais e mais, e compra. Tem trago a R$ 1, R$ 0,50.

    CADEIA

    Já roubei. Passei sete meses e meio dentro de um presídio. Foi por causa de R$ 5. Por causa de um amigo meu. Ele roubou uma moça e eu estava junto. No dia da audiência, ela foi sincera e falou que eu só estava acompanhando.

    Fui para o CDP Belém 2. Fiquei doente lá dentro. Aí me mandaram para a enfermaria, mas você não tem recurso nenhum, não tem nada. Simplesmente mandam para lá e te dão paracetamol e dipirona. Se você estiver muito mal chamam uma ambulância do C.O.C., que é um médico da rua.

    Tratamento - Em %

    ALGEMAS

    Se você ficar internado, fica lá e algemado na cama, que foi meu caso. Foram 15 dias, eles estavam com suspeita de TB [tuberculose], mas nunca tive nenhuma doença oportunista. Inclusive meu exame está dando [carga viral] indetectável. Tomo um comprimido só. É três em um, à noite. Levo para casa, tomo todos os dias.

    Por enquanto ainda estou no albergue, mas vou para outro lugar, uma casa que só cuida de pessoas como eu, entendeu? Só para quem é portador do HIV. Eles aqui estão me ajudando a ir pra lá.

    Procuro não me envolver com quem usa. Meus amigos não são 100% limpos, mas quando percebo que a coisa vai para outro caminho, me afasto. Queira ou não os amigos são uma influência.

    Vou retomar meus estudos. Logo em seguida um trabalho. Tem que ser passo a passo, pra não ir tudo de uma vez, ficar ansioso, ter uma recaída ou ter uma frustração e voltar tudo pra trás. Não quero isso. Já fiz várias vezes, entendeu? Achar que ia dar certo...

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