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    Geneton Moraes Neto (1956 - 2016)

    Mortes: Jornalista com habilidade para entrevistas

    NICOLA PAMPLONA
    DO RIO
    GABRIEL VASCONCELOS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    23/08/2016 21h02

    Durante uma das cirurgias para tratar o aneurisma que lhe levou a vida nesta segunda-feira (22), o jornalista Geneton Moraes Neto, 60, ouviu da equipe médica a fatídica frase "Perdemos o pulso". Ao narrar o fato a um amigo, dias depois, mostrou preocupação pelo risco de não ter para quem relatar a história.

    "'Véio', eu ia levar para o outro lado essa última expressão de vida. 'Perdemos o pulso!'. Mas será que do outro lado tem alguém para quem possa contar essa história?", teria dito, bem-humorado, segundo o jornalista Cláudio Renato, colega de trabalho na Globonews. "Geneton era repórter até metafisicamente", brincou o amigo, em texto postado em uma rede social.

    Com uma carreira de 44 anos no jornalismo, a maior parte deles na TV Globo, o pernambucano Geneton ficou mais conhecido pela sua habilidade como entrevistador.

    Ouviu personagens polêmicos, como os generais Newton Cruz (ex-chefe do Serviço Nacional de Informações) e Leônidas Pires Gonçalves (ministro do Exército no governo Sarney), que ocuparam importantes postos durante a ditadura militar, e trouxe novamente à luz o compositor Geraldo Vandré, 40 anos depois que sua "Para não dizer que não falei das flores" foi elevada, a contragosto, a hino da militância política nos anos 60.

    "A pior coisa do mundo é jornalista entediado e derrubador", disse certa vez a estudantes de jornalismo, em uma entrevista sobre a arte da entrevista –referia-se a jargão usado para a falta de interesse em um assunto ("derrubar a matéria").

    "É preciso ter a pretensão saudável de se perguntar 'porque, mesmo sendo a milésima primeira entrevista, eu não posso arrancar alguma coisa interessante e nova de Pelé?'. Essa atitude esperançosa é fundamental para o exercício da profissão."

    Geneton guardava as suas anotações e fitas cassete com entrevistas feitas ao longo da carreira, para o caso de precisar remexer algum assunto. O acervo ajudou amigos, como o cineasta Vladimir Carvalho, que conheceu em Recife nos anos 1970.

    "O Geneton encontrou nos alfarrábios dele uma gravação com o Cícero Dias [artista pernambucano morto em 2003], que me ajudou enormemente. Sem ele, o filme que estou fazendo sobre o Cícero não teria o escopo que tem", contou Carvalho.

    Os cabelos bagunçados, a barba de sempre e as camisas preferencialmente escuras levaram o general Newton Cruz a acusá-lo de ter um "jeitinho comunista".

    A desordem, porém, ficava só na aparência. "Era um cara extremamente disciplinado. Sempre chegava sabendo o que queria e gostava de colocar a mão na massa", afirma o editor de vídeo Aldrin Luciano.

    O repórter costumava varar as noites trabalhando na sede da TV Globo, no Jardim Botânico, zona sul do Rio. Já nos dias de gravação, Geneton dispensava o aparato da empresa, capaz de movimentar até duas equipes inteiras de filmagem para uma entrevista como as que fazia em seu programa. "Íamos eu ele sozinhos na unozinho [modelo Fiat Uno] que ele tinha", conta Luciano.

    Apesar de frequentar assiduamente as ilhas de edição, o repórter ainda era "analógico". Decupava fitas e escrevia roteiros de programas com papel e caneta. Andava com dois celulares antigos, um para ligar e outro para consultar a agenda. E, no kit, ainda havia uma calculadora no bolso da camisa e o gravador para os dias de entrevista.

    Para Geneton, gravar era a garantia de preservar a fala do entrevistado, uma obsessão desde os dezesseis anos, quando começou no Diário de Pernambuco. À época, uma entrevista com Caetano Veloso garantiu a relação de confiança, como lembrou o cantor ontem (23) em sua rede social.

    "A impressão que o garoto pernambucano me causara e a percepção de sua inteligência honesta só fizeram crescer ao longo dos anos. Se o jornalismo brasileiro tem algo de que se orgulhar, Geneton o representa melhor que ninguém", escreveu.

    Sempre tentando inovar, Geneton brincava com o papel do narrador e muitas vezes arriscava com movimentos de câmera rápidos, cortes secos e até introdução de fotografias no vídeo.

    "Ele gostava de levar uma câmera para me filmar enquanto eu lia o texto no estúdio, tudo para criar uma nova dimensão", conta o colega Sérgio Chapelin.

    "Sua contribuição merece ser estudada e desenvolvida porque a televisão brasileira sempre foi muito formalista", opina o amigo Janio de Freitas, colunista da Folha.

    Criador de memória, como gostava de se colocar, Geneton foi muitos. Mas era, sobretudo, uma pessoa simples. "Modesto Geneton", escreveu seu ídolo Paulo Francis, no prefácio do livro "O Dossiê Drummond: a Última Entrevista do Poeta", sobre Carlos Drummond de Andrade. "Jornalistas de primeiro time de Geneton suprem nossas lacunas históricas e culturais", concluiu Francis.

    O jornalista deixa mulher e três filhos. Seu corpo será enterrado nesta quarta (24), no Rio.

    coluna.obituario@grupofolha.com.br

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