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    Precário, bairro dos 5 jovens mortos em chacina tem até tiroteio em creche

    LEANDRO MACHADO
    DE SÃO PAULO

    21/11/2016 02h00

    No último dia 9, os corpos de cinco jovens do Parque São Rafael, mortos em uma chacina, eram identificados no Instituto Médico Legal. No mesmo dia, no mesmo bairro do extremo leste de São Paulo onde eles viviam, um ladrão invadiu uma creche, ameaçou professores e trocou tiros com policiais na frente de crianças de quatro anos.

    Faltavam dez minutos para a saída da creche Maria Aparecida do Nascimento. Funcionários serviam o último lanche do dia para as crianças. Do lado de fora, as mães aguardavam o sinal das 16h para pegar seus filhos.

    Perto dali, um jovem roubou uma moto. Ele foi visto por policiais militares. Começou a perseguição. O rapaz pulou um portão da creche. Ameaçou professores. Tentou fugir. Policiais militares entraram. Um tiroteio começou nas escadas.

    A troca de tiros na frente de crianças parece ser um símbolo do cotidiano do Parque São Rafael, um dos distritos mais pobres e problemáticos da cidade. Nas ruas, a sensação é de que algo grave está sempre por ocorrer.

    Era ali que os cinco jovens mortos na chacina viviam. Na noite de 21 de outubro, eles saíram do bairro para ir a uma festa na cidade vizinha de Ribeirão Pires. Desapareceram por duas semanas. Seus corpos foram encontrados em uma mata na Grande SP.

    Guardas civis da cidade vizinha de Santo André são suspeitos pela chacina. Eles teriam cometido o crime como vingança pela morte de um colega no mês de setembro. Dois dos cinco jovens mortos foram apontados como autores do crime -fato nunca comprovado pela polícia.

    ONDA DE VIOLÊNCIA

    São Rafael vive uma onda de violência que assusta os moradores: neste ano, houve 1.200 roubos por ali, crescimento de 30% -a alta na cidade toda foi de 4%. Houve 17 assassinatos no distrito, que tem 150 mil habitantes.

    "Meu filho está em choque. Não quer mais ir para a creche depois do que aconteceu. Ele chora, só vai à força", diz a dona de casa Ana Carolina Noronha, 28, mãe de João Miguel, 4, testemunha do tiroteio.

    Os professores pagam garagem de moradores para evitar terem os carros roubados na própria creche. "Temos vigilantes só à noite. Não tem controle de acesso, qualquer um entra", disse uma servidora, que decidiu não levar mais seu próprio filho para a escola.

    A gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) afirmou que a responsabilidade pela segurança pública é do governo do Estado, mas que vai enviar reforço de guardas civis. Por sua vez, o governo do Estado diz que a responsabilidade pela segurança das escolas municipais é da prefeitura.

    Policiais dizem que 60% dos crimes de São Rafael são obras de adolescentes. Esse é o distrito de SP onde a PM mais apreende menores.

    Para um policial da região, a falta de "comando forte" da facção criminosa PCC estimula os roubos. Ele diz que a facção toma conta do tráfico de drogas em favelas próximas, mas não em São Rafael. Nos locais "dominados", diz, o PCC barra assaltos para evitar a presença da polícia.

    Por outro lado, jovens da região têm reclamado de abusos policiais para servidores da secretaria municipal dos Direitos Humanos. A Secretaria Estadual da Segurança Pública, do governo Geraldo Alckmin (PSDB), afirma que faz prisões e recupera carros roubados no distrito.

    ÁREAS LIVRES

    A violência talvez seja a consequência mais grave da precariedade do bairro -o 11º pior em renda dos 96 distritos da cidade. Em São Rafael, cada habitante ganha em média R$ 540,97 mensais. Dados da prefeitura apontam que 30% dessa população está em "alta vulnerabilidade social".

    São Rafael é cercado por favelas. Elas cresceram na esteira do Rodoanel Leste, rodovia inaugurada em 2014 e que passou a cortar o bairro. Terrenos foram desapropriados e, quando a obra ficou pronta, eles ficaram vazios, atraindo milhares de pessoas em busca de áreas livres para construir casas.

    Um dos locais do distrito que sofre com a favelização é o Morro do Cruzeiro, que tem 998 metros de altitude (o segundo ponto mais alto da cidade, só atrás do Pico do Jaraguá). Ali, cerca de 250 árvores nativas da mata atlântica foram derrubadas para dar lugar a barracos precários, segundo a guarda civil.

    A gestão Haddad prometeu fazer um parque no morro, mas o projeto não vingou.

    O petista também prometeu erguer 12 mil moradias em São Mateus, subprefeitura que agrega três distritos -entre eles, São Rafael. Só entregou 650 casas, e outras 220 estão em obras. A prefeitura diz que retenção de repasses federais atrasou o cronograma na área da habitação.

    UMA TRAGÉDIA

    Também faltam vagas nas creches, e 3.000 crianças estão na fila. A dona de casa Ana Carolina Noronha, cujo filho presenciou o tiroteio na escola, espera há dois anos para matricular sua outra filha, Helena, 2. "Entrei na Justiça para conseguir, mas até agora não saiu", diz Ana.

    A gestão Haddad prometeu 22 creches para a região, mas só três foram entregues.

    A conselheira tutelar Fátima Magalhães, 48, faz um diagnóstico de quem mora ali desde que nasceu. "Aqui não tem emprego. Nossos jovens têm de ficar duas horas no ônibus para trabalhar no centro. Alguns ficam desocupados e preferem o crime. Alguns morrem como os cinco da chacina. É uma tragédia".

    Na quinta (17), enquanto as crianças brincavam nas salas da creche, professores contavam a história do tiroteio. Quando entrou, o ladrão exigiu o silêncio das crianças. Disse que iria atirar em todos dentro da escola.

    Ele conseguiu fugir da polícia. As marcas dos tiros não estão só nas paredes.

    *

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    Cronologia do crime

    GCM morto
    Em 24.set, o guarda de Santo André Rodrigo Lopes Sabino é assassinado em um roubo, em bairro próximo de onde moravam os 5 jovens vítimas da chacina

    Carro queimado
    Guardas acham o veículo do GCM queimado, também perto de onde moravam os rapazes, e descobrem o nome de dois jovens que estariam envolvidos no latrocínio

    Emboscada
    O guarda Rodrigo Gonçalves Oliveira usa perfil falso no Facebook, se passando por uma garota, para combinar de encontrar os rapazes em uma festa

    Sumiço
    Em 21.out, eles desaparecem após saírem para a suposta festa, por volta das 23h

    Página excluída
    O perfil da garota que combinou o encontro é apagado da internet

    Corpos encontrados
    No dia 6.nov, os 5 corpos são achados em Mogi das Cruzes (Grande SP), com projéteis de calibres 38 e 12, usados por guardas municipais do país

    GCM preso
    Na noite de quinta (10), o guarda Oliveira é preso e tem prisão temporária decretada por 30 dias

    Sepultamento
    No sábado (12), quatro dos rapazes são enterrados na zona leste de São Paulo; o corpo de Jones, 30, ainda não foi liberado

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