• Cotidiano

    Sunday, 19-May-2024 08:34:11 -03

    Maranhense vira homem-placa e roda o Brasil de carona à procura do filho

    THAIS LAZZERI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    11/12/2016 02h00

    Atadas a uma mochila por um cordão bege, duas folhas plastificadas exibem fotos de um rapaz de pele e cabelo negros. Uma das imagens pende sobre o peito do maranhense José Ribamar de Fátima Rodrigues, 60. A outra lhe cobre parte das costas.

    Ele veste uma camisa azul e tem os pés metidos em sapatilhas desbotadas. No vaivém da praça da Sé, um tímido e franzino José –incapaz de se acostumar com o clima da capital– enverga as fotos como se fosse um homem-placa.

    No retrato maior, Cleilton, 29, tem os olhos estalados. No menor, um raro momento em que aparece sorrindo. Os cartazes que passam despercebidos na multidão estampam a dor do pai de dez filhos.

    No topo da placa, em letras maiúsculas, está a razão para José ter esquecido do próprio aniversário, em 12 de julho, o primeiro que passou longe da família: DESAPARECIDO.

    De janeiro a outubro deste ano, 21.913 boletins de ocorrência de desaparecimento foram registrados no Estado de São Paulo. Isso equivale a três pessoas por hora que perdem o convívio com suas famílias. De janeiro de 2013 a dezembro de 2015, eram dois os desaparecidos por hora em São Paulo.

    Na casa dos Rodrigues tudo se tornou confusão em 11 de março deste ano, quando a notícia do sumiço de Cleilton chegou por telefone à residência do patriarca em Timon, cidade com 165 mil habitantes no Maranhão.

    Cleilton estava na casa do irmão mais velho, Wilson, 42, em Guariba (a 340 km de SP). Sumiu um dia depois de ser visto chorando no trabalho.

    O primogênito descobriu que o pranto, a insônia e a mania de perseguição do irmão eram mais que saudade e mau humor. No cartaz de José, a explicação: "Ele sofre de esquizofrenia e depressão".

    Por 20 dias, esperou notícias do filho. Em abril, o ex-soldador, que mantém uma casa com oito pessoas com um salário mínimo, pegou um empréstimo de R$ 4.000 para procurar o filho, a pé, pelas estradas do Brasil.

    Na mochila, leva documentos, três fotos da família, sete peças de roupa –nenhuma de frio–, um kit de higiene e cópias do cartaz. "Minha mulher falou para trazer esta calça, que na época não cabia", diz sobre a peça azul-marinho que usa, presa por um cinto preto que ganhou três furos feitos à mão. José perdeu 15 dos antigos 70 kg.

    "A estrada pode ser boa para quem anda passeando, mas não para quem está com um trabalho feito o meu."

    Foi na quarta maior rodovia do país, a BR-153, que vai do Pará até o Rio Grande do Sul, que José enfrentou o primeiro de incontáveis preconceitos. O caminhoneiro Ronaldo Carlos, 42, que lhe deu carona do Tocantins a Minas Gerais, viu quando confundiram José com um mendigo.

    "Não viram um pai desesperado, mas um homem tirando proveito de uma deficiência." José diz que perdeu a mão e parte do braço esquerdo aos 13 anos, quando uma granada achada no mato explodiu na sua frente.

    BOLETIM

    A falta de instrução formal –José estudou até a 5ª série– não o impediu de fazer as perguntas certas. A primeira, na delegacia de Guariba. Quis saber por que não fizeram o boletim de ocorrência nas quatro vezes que Wilson tentou registrar o sumiço de Cleilton.

    "Primeiro disseram que faltava documento, depois, para esperar que ele voltaria."

    Um dia, finalmente, ele ouviu o que esperava. "Acharam seu filho. Ele está em Araraquara [SP]." O sistema mostrou um boletim de ocorrência registrado em 17 de março, dez dias após o sumiço.

    Se a polícia de Guariba tivesse feito o registro como prevê a lei, a autoridade policial de Araraquara poderia ter encontrado os dados no banco da Polícia Civil e entrado em contato com a família de Cleilton. Não foi o que aconteceu.

    Em Araraquara, uma funcionária do Centro de Atendimento à População de Rua levou Cleilton à delegacia. José encontrou essa mulher. Ela disse ter atendido o rapaz e que ele estava "meio desnorteado". O centro então doou uma passagem para que ele fosse para São Paulo.

    DOIS DESAPARECIDOS POR HORA - Estado de SP teve mais de 22 mil registros em 2016

    No centro de assistência social da rodoviária do Tietê, José confirmou que o filho desembarcou no dia 18 na capital. Via Defensoria Pública, o pai tentou acesso às imagens das câmeras de segurança, que poderiam indicar o próximo passo do rapaz, mas as gravações foram apagadas. Por isso, José nunca mais deixou São Paulo.

    Na capital, o homem descobriu que era o único a procurar por seu filho. Na Delegacia de Pessoas Desaparecidas, soube que o registro do sumiço de Cleilton apenas entraria para o banco de dados da Polícia Civil. "E o policial me disse que eles não saem procurando."

    José criou uma estratégia para tentar vencer o descaso do país com seus desaparecidos: registrar um boletim em cada Estado. Assim, diz ele, se o filho for parado em alguma abordagem policial, a família poderá ser contatada.

    Na mochila, ele leva os registros feitos em Minas, Rio, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás.

    Atrás de novas pistas, foi a Paulínia (a 126 km de SP) há duas semanas, onde a Folha o acompanhou. "Aprendi a não ter expectativa. Quanto mais a gente acredita, pior é a dor quando vê que não é."

    No dia seguinte, José já caminhava pela capital. Foram mais de dez quilômetros sem beber nada, enganando a fome com balas de café.

    As pistas o levaram ao Cemitério Municipal de Santana. Tentava encontrar o filho, vivo, num lugar entregue à morte. Do alto de um barranco, entre lápides, José avistou um mendigo, pardo, esparramado na grama.

    Passos adiante, olhou para trás e balançou a cabeça. A realidade é o maior tormento de José. "Não é doído isso? Não dá pra deixar de procurar um filho... É para o resto da vida."

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024