Daria um filme: uma negra com uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço. Mãe solteira, dois contra o mundo.

Ana Soares Pereira veio da distante Riachão do Jacuípe, na Bahia (186 km de Salvador). Aos 16, após um desentendimento sério com o pai por ter ido a uma festa, fugiu da família e dos 17 irmãos para São Paulo.

Na metrópole, se instalaria na Pedreira, na zona sul, e trabalharia como empregada doméstica por quase meio século. Não estudou. Aprendeu a ler apenas a sutra do seicho-no-ie. Lia todos os dias bem cedo e nos fins de tarde.

Gostava muito de ir a bailes para se divertir. Em um deles, conheceu um italiano bonito, que se vestia muito bem. Tiveram um relacionamento e Ana engravidou. Quando deu à luz, já tinha mais de 40 anos. O parceiro a rejeitou e não assumiu o bebê.

O filho pardo, sem pai, dizia que Dona Ana era uma rainha. Tinha o sonho de ver a sua "coroa" de turbante e chofer, uma madame nagô (etnia oriunda do oeste africano).

Fez do rebento um homem. Frente à frustração do jovem com a falta de união no movimento negro, pedia a ele para acordar. "Pensa no futuro, isso é ilusão. Olha o tanto que eu sofri", dizia. "A inveja mata um, tem muita gente ruim." Ele a venerava. O amor pela senhora já não cabia em Saturno.

Dona Ana morreu no dia 19, após uma parada cardíaca, aos 81 –ao menos oficialmente, já que ela dizia só ter sido registrada com 4 ou 5 anos. Deixa dois netos e o filho Pedro Paulo, mais conhecido como o rapper Mano Brown, dos Racionais MC's.

	Arquivo pessoal
	Reprodução de retrato de Ana Soares Pereira (1935-2016), durante a juventude

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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