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    Alalaô

    'Revitalização de blocos é reação à crise', diz historiador do Carnaval

    CAROLINA LINHARES
    DE BELO HORIZONTE

    28/02/2017 12h30

    Tempo de festa, o Carnaval também é político, crítico e revolucionário, afirma o historiador Marcos Maia, que pesquisa o tema há quase 20 anos em Belo Horizonte, cidade que vive uma explosão dos blocos de rua.

    Maia levanta a hipótese de que a revitalização dos bloquinhos na capital mineira, em São Paulo e no Rio, cuja característica maior é a apropriação do espaço público, seja "uma resposta de setores da juventude e da classe média à crise das cidades".

    "É só lembrar de 2013 no Brasil. Foi um período em que várias cidades se rebelaram. Havia uma inquietude", afirma à Folha.

    "Nessa sociedade que vivemos hoje, de avanço de setores conservadores que querem coibir o prazer, enquadrar a mulher e os gêneros sexuais, o Carnaval toma esse aspecto político de enfrentar isso", completa.

    O historiador diz ainda que o Carnaval também foi utilizado como resistência pelos sambistas negros que, por herança da escravidão, muitas vezes morreram pobres. "Os desfiles das escolas de samba eram uma maneira de o negro e setores populares serem respeitados no centro do Rio de Janeiro pela sua arte."

    *

    Folha - O Carnaval de rua voltou a estar na moda em Belo Horizonte, São Paulo e Rio, mas quando ele começou?
    Marcos Maia - Na verdade, não voltou. O Carnaval sempre aconteceu, mas não nesse lugar da classe média. Ele acontecia nas favelas. Em Belo Horizonte, as comunidades desciam para a avenida Afonso Pena para o desfile de escolas de samba e blocos caricatos.

    Houve uma pequena interrupção na década de 1990 e nos anos de 1943 a 1945, porque Getúlio Vargas proibiu manifestações de rua em função da participação do Brasil na Segunda Guerra. No Rio, não respeitaram muito.

    Então, essa festa sempre aconteceu. O que ocorre de 2009 para cá, estou chamando de revitalização, pois não encontrei conceito melhor. Ainda antes dos anos 2000, no Rio, já havia esses blocos que conquistaram um público que não queria ficar refém da Marquês de Sapucaí.

    E São Paulo também faz parte desse circuito de crescimento dos blocos. Também vejo similaridade com Olinda, que é aquela ideia de Carnaval que mais se aproxima do conceito bakhtinano clássico [referente ao filósofo russo Mikhail Bakhtin] de renovação, alegria, inversão, mudança, improviso e gratuidade da brincadeira em praça pública.

    Esse Carnaval de blocos no Rio, São Paulo e Belo Horizonte têm essa característica da gratuidade e da apropriação do espaço público, por mais que ele se restrinja, de modo geral, à classe média.

    O Carnaval é político?
    É político também. Ele tem como característica a inversão das regras, a quebra das hierarquias. Analisando estudiosos como Bakhtin, que estudou o Carnaval na época medieval na Europa, vemos que o alto clero ou o senhor daquela comunidade se igualavam ao servo.

    Ao se despir literalmente e simbolicamente dos lugares de poder, as pessoas tinham um reencontro com a sua própria humanidade. O Carnaval bakhtinano daquele período tem um caráter humanista, ou seja, de reencontro com o ser humano. Não é o bispo, o senhor feudal ou o servo —é a pessoa ali de carne osso com as suas alegrias e seu potencial. Tem esse caráter de propiciar um reencontro humanista de alegria, respeito e igualdade. Para Bakhtin, é um período que tem um elemento revolucionário.

    E como se dá isso no Brasil?
    No século 19, havia as grandes sociedades, fundadas por José de Alencar no Rio, que eram sociedades de pequenos empresários e profissionais liberais que se reuniam durante todo ano com bailes e, no Carnaval, faziam desfiles com carros alegóricos e de crítica. Na campanha abolicionista, eles tiveram um papel de criticar a abolição e o Império, por exemplo.

    Nessa sociedade que vivemos hoje, de avanço de setores conservadores que querem coibir o prazer, enquadrar a mulher e os gêneros sexuais, o Carnaval toma esse aspecto político de enfrentar isso. De dizer que não, nós temos direito de brincar, temos o direito sobre nosso corpo.

    A maioria dos blocos tem esse lado crítico, esse olhar democrático sobre a cidade, um elemento político bastante forte e consciente.

    Além dos blocos, as marchinhas são uma expressão política?
    Sim. Ela não nasceu por isso, mas incorpora muito essa caricatura escrita, uma brincadeira, uma crônica rápida de um momento pitoresco. A marchinha veio de Portugal e tomou essa cor brasileira. Mas não é só política. Tem marchinhas de temáticas várias. Como muitos blocos têm esse entrelaçamento com lutas populares e movimentos sociais, a marchinha acaba respondendo a essas temáticas.

    O sr. faz uma relação entre crise e Carnaval. O que tem a ver?
    Numa análise histórica, os períodos festivos têm muita relação com períodos de crise. Nas próprias saturnais romanas, no início das festas da humanidade, após períodos de seca ou fome, quando a comunidade conseguia uma boa caça e colheita, elas comemoravam.

    A festa está muito relacionada ao luto. Na medida em que você tem consciência da morte e da tragédia humana, você tem que viver para sobreviver. Quando a gente vive é num momento de lazer, no fim de semana. E o Carnaval traz essa característica de vida, de exarcebação.

    Não é fruto de pesquisa, é só uma reflexão, mas esses carnavais de blocos do Rio, São Paulo e Belo Horizonte, de democratização do espaço público, talvez tenham a ver com uma resposta de setores da juventude e da classe média à crise das cidades.

    Qual crise exatamente?
    De violência, transporte urbano, da saúde, do adensamento. É só lembrar de 2013 no Brasil. Só lembrar do movimento que houve em Madri e no norte da África. Foi um período em que várias cidades se rebelaram. Havia uma inquietude. O que caracterizava esses movimentos de massa, que muitas vezes incorporavam jovens mobilizados pelas redes sociais, era uma crítica.

    No Brasil, esse Carnaval de blocos veio em 2009, 2010, 2011 É talvez uma maneira de responder a esse momento de insegurança, inquietude, incerteza do que vai acontecer. Estamos vivendo uma crise econômica, mas mesmo assim o Carnaval tem crescido de ano a ano —alguma relação tem aí. É uma hipótese.

    O que o Carnaval deixa de legado a cada ano?
    Que viver em toda sua potencialidade de corpo, prazer e alegria vale a pena. Que é possível sobreviver às tragédias, aos regimes políticos, à miséria. Que você vai para um lugar com a roupa que quiser, que vai poder brincar com quem quiser e dizer o que quiser que ninguém vai te importunar. Principalmente nesse Carnaval dos blocos, de Bakhtin. Traz essa lição de alegria, mas hoje ter alegria e liberdade passa por um enfrentamento político, porque não se conquista isso de graça.

    O sr. também estuda o samba. Por que os sambistas morrem na miséria no país do samba?
    Tem a ver com nossa tradição de séculos de escravidão que até hoje não foi compensada. O negro não teve acesso à assistência, foi para as favelas. Só que, ao mesmo tempo que sofreu todos essas barbaridades, manteve as suas tradições riquíssimas. Tem o jazz e o blues, nos EUA, a música cubana, o samba no Brasil, o candomblé, umbanda —é uma riqueza fantástica que não se perdeu ou acabou com todo esse sofrimento.

    O Carnaval e os desfile de escolas de samba foram utilizados como resistência, uma maneira de o negro e setores populares serem respeitados no centro do Rio de Janeiro pelas demais classes sociais através de sua arte.

    Os sambistas têm tido muito reconhecimento nesse aspecto simbólico. Mas a grande maioria morreu na miséria ou na penúria. Nelson Cavaquinho e Cartola passaram por isso. Para quem não teve escolaridade é muito mais difícil se organizar, fazer uma banda, disputar o mercado, fazer um CD, ter uma produção profissional.

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