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    Rio de Janeiro

    De novo em guerra, Alemão tem PMs sobre lajes e revolta de moradores

    MARCO AURÉLIO CANÔNICO
    DO RIO

    05/03/2017 02h00

    Fabiano Rocha - 11.fev.2017/Agência O Globo
    Policial em imóvel no Complexo do Alemão, no Rio; moradores se queixam por utilização de casas pela PM como base em confrontos com traficantes
    Moradores se queixam por utilização de casas pela PM como base em confrontos com traficantes

    Principal ícone da política de pacificação dos morros do Rio, o Complexo do Alemão, que foi ocupado de modo cinematográfico em 2010, tem sido cenário de confrontos diários entre polícia e traficantes desde o início de fevereiro.

    As constantes trocas de tiro vêm atormentando a vida dos moradores e deixando marcas em imóveis, muitos deles com centenas de perfurações feitas por balas.

    Os residentes afirmam que policiais estão invadindo domicílios para usá-los como base para ataques, além de cometerem furtos e abusos de autoridade –o que é negado pela Polícia Militar.

    Os confrontos acontecem na comunidade Nova Brasília, uma das 15 do complexo –e uma das quatro com base da Unidade de Polícia Pacificadora, erguida em 2012. Lá vivem 28,6 mil habitantes.

    "Até um bom tempo após a criação das UPPs, os policiais patrulhavam toda a região tranquilamente", diz o major Leonardo Zuma, que comanda os 336 homens da UPP Nova Brasília desde 2015.

    "Mas era de se esperar que em algum momento os traficantes tentassem retomar um território que tem uma importância estratégica e moral imensa para eles."

    O epicentro da guerra é a região conhecida como praça do Samba, cuja posição geográfica privilegiada torna sua ocupação estratégica.

    Pedro Pantoja
    Imóveis com paredes esburacadas após constantes tiroteios entre PM e traficantes na região do Complexo do Alemão
    Imóveis com paredes esburacadas após tiroteios entre PM e traficantes no Complexo do Alemão

    Com ajuda de agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope), os PMs da UPP invadiram a praça no início de fevereiro, expulsando os traficantes. Desde então, a retaliação tem sido diária.

    "É o tempo todo essa guerra de cão e gato, a gente avançando no terreno, eles tentando retomar", diz Zuma.

    A entrada da polícia na praça do Samba tem como objetivo construir uma base avançada, à prova de bala, para a UPP. Para dominar o território e garantir a execução da obra, foi necessário ocupar lajes dos moradores, de acordo com o major.

    "No início nós não estávamos ocupando, mas os traficantes ocupavam e jogavam granada nos policiais que ficavam no chão. Mas só estamos em casas abandonadas", afirma Zuma.

    A versão é contestada não só pelos moradores, mas por uma comissão de advogados, deputados e defensores públicos que visitou o Alemão.

    "A polícia alega que são casas abandonadas, mas comprovamos que não era o caso. Não havia gente morando, mas havia máquinas de lavar, varais, algumas estavam em obra. É um patrimônio das pessoas", diz Pedro Strozenberg, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio.

    "Você tem a presença dos proprietários, mostrando com documentos que os imóveis têm donos, que eles estão ali presentes, e ainda assim a polícia não reconhece."

    Strozenberg afirma que a ocupação não teria respaldo legal "mesmo se as casas estivessem abandonadas". "Eles transformam os imóveis em pontos de confronto. Mesmo quando não há alguém morando na laje, quem mora embaixo sofre com isso."

    Além de protestar nas redes sociais, ao menos uma moradora denunciou a invasão dos PMs na 8ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar.

    "Fiz a denúncia no dia 3 e até agora nada. Continuam acampando na minha laje dia e noite, fizeram de base", diz a moradora, em vídeo do jornal local "Voz das Comunidades" postado em rede social. "Tinha sofá, televisão, tirei tudo aqui de cima."

    VIVENDO SOB TIROTEIO

    Os moradores vêm usando as redes sociais para relatar o horror de viver nesse cenário. "Começa tiro, acaba luz, criança tem que voltar do colégio. Saudades do velho complexo", escreveu uma moradora.

    Outra mães reclamam de "ter que subir e descer na base dos tiros para levar e buscar as crianças no colégio", e afirmam que os confrontos acontecem "sempre nos horários das escolas".

    Segundo o "Voz das Comunidades", que monitora as vítimas a partir de registros oficiais e relatos da comunidade, dois traficantes e um entregador de farmácia foram mortos neste ano. Outros dez moradores foram baleados, além de três policiais.

    Procurado pela Folha, o Instituto de Segurança Pública, responsável pelas estatísticas do Estado, afirmou que ainda não contabilizou os dados de fevereiro. Em janeiro, a delegacia que cuida do Alemão (45ª DP) registrou um homicídio doloso, três lesões corporais dolosas e outras três culposas (sem intenção).

    Raio-x do Complexo do Alemão

    IMPROVISO

    A crise econômica do Rio vem afetando a política de pacificação e favorecendo o recrudescimento do tráfico em áreas ocupadas por UPPs, como o Complexo do Alemão. Consequentemente, voltaram a ser comuns confrontos entre policiais e traficantes.

    "É o que estamos acostumados historicamente no Rio, infelizmente: a lógica da disputa do território por meio das armas, não de políticas públicas", diz Pedro Strozenberg, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio.

    Frente ao avanço do tráfico, o comandante da UPP Nova Brasília, uma das quatro do complexo, decidiu erguer bases avançadas em pontos estratégicos da favela –uma já inaugurada, na Alvorada, e a outra em construção, na praça do Samba.

    "Para a PM fazer patrulhamento até esses locais era necessário trocar muito tiro, trazia muita insegurança para a comunidade, ficávamos no máximo meia hora e íamos embora", diz o major Leonardo Zuma. "Era necessário colocar uma base para ficarmos no local 24h por dia."

    O ponto de apoio que ficará na praça do Samba teve sua obra prejudicada pela calamidade financeira do governo fluminense.

    "Não conseguimos fazer por licitação porque ficou muito caro, então eles deram dinheiro para que comprássemos diretamente os materiais. Uma base que custaria R$ 150 mil, estamos fazendo por R$ 15 mil", diz Zuma.

    Segundo ele, a construção deve ser concluída em 45 dias. Uma vez pronta, "não vamos mais precisar ocupar as lajes", afirma o major. Cinco PMs devem manter guarda no local, que terá ar-condicionado, banheiro e geladeira.

    Nem mesmo a construção das bases avançadas, no entanto, garante o fim dos confrontos, dada a importância do Complexo do Alemão para o tráfico –a facção Comando Vermelho, que dominava a região, tenta retomá-la.

    Os criminosos vêm colocando obstáculos no caminho entre a sede da UPP e as bases, para dificultar o deslocamento da polícia.

    Os seguidos confrontos entre policiais e traficantes deixaram um cenário de "guerra conflagrada", na descrição de Pedro Strozenberg, que visitou a área a pedido dos moradores.

    "Vi uma varanda com pelo menos 50 marcas de tiro na qual estavam uma senhorinha, uma menina e um rapaz. As pessoas não têm para onde ir, vivem nesse cenário de absoluto estresse sem assistência emocional", afirma o ouvidor da Defensoria Pública do Rio.

    "Há uma invisibilidade dessa guerra no Alemão e nas favelas em geral. É preciso que a gente rompa esse ciclo de silêncio."

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